quinta-feira, maio 13, 2010

Um grito que não existiu


Às cinco horas e quarenta e cinco minutos da manhã, ao soar escandaloso do relógio de cabeceira, Eco despertou, levantou-se lenta e calmamente e abriu a janela de seu quarto. Sentia uma estranha necessidade de iniciar aquele dia saudando as flores de seu jardim. Mas, nessa manhã, Eco não pode vê-las, as flores não estavam lá; era, na verdade, como se nunca tivessem estado. Em lugar de flores só havia mato, pragas, ervas daninhas... Eco não compreendeu o que teria acontecido, mas também não dedicou muito tempo a pensar no assunto. Assim, o “desaparecimento repentino” do jardim não alterou seu ritmo. “Preciso de um café”, pensou.
Ao ir preparar o café da manhã, passou pelo dormitório que havia sido de seus filhos, abriu as janelas e murmurou um “bom dia” suave, sem esperança de resposta - não porque as crianças já não estivessem ali, mas porque seu “bom dia” há muito não obtinha qualquer resposta. Caminhou em seguida para a cozinha, abriu as cortinas e, só neste momento, notou que o dia estava acinzentado, o quintal encharcado, o varal, cheio de roupas, prostrado ao chão. Era evidente que chovera a noite toda. “Que terá havido com as flores? - pensou - Talvez a chuva as tenha levado. Talvez o vento tenha sido impiedoso...”

Depois do café com pão e queijo, Eco tomou um banho bem quente e demorado, como sempre costumava fazer; vestiu-se em roupas confortáveis, quentinhas, e voltou a tomar mais um café.
Às sete e cinco sentou-se à frente de seu computador e começou a escrever. Trabalhava em seu terceiro romance; a editora dera-lhe um prazo menor desta vez e ela teria de terminá-lo logo. Seus pensamentos, então, fugiram do jardim, das crianças, da chuva... Tudo em que pensava era no que deveria acontecer a Narciso e Astréia – ela precisava dar-lhes um final feliz – leitores esperam um final feliz.
Eco trabalhou por horas a fio até que sentiu uma certa fraqueza, seus músculos estavam rijos, sua cabeça doía. Talvez tivesse fome. Antes de desligar o computador checou seu correio eletrônico, na esperança de haver lá um alô de um dos filhos, ou talvez de um amigo... Há meses não recebia senão notícias das editoras e propagandas de novos sites. Nesse dia não foi diferente... Com um falso descaso, Eco levantou-se e dirigiu-se à cozinha, em um movimento lento, quase automático. Abriu uma lata de atum, uma de milho e uma de ervilha; picou uma cebolinha, um pouco de cheiro verde e, lançando mão de uma boa colherada de maionese, fez uma salada que comeu com pão, acompanhada de goles de um refrigerante já sem gás que era tomado aos poucos – há dias...
Ainda à mesa, Eco cogitou a possibilidade de falar com alguém, sentia a necessidade de trocar algo, embora não soubesse bem o que ou com quem. Ela vivia sozinha desde que se divorciara, há alguns anos, e seus filhos optaram por viver suas próprias vidas em cidades diferentes. A filha estudava medicina em São Paulo, e o filho, já formado em música, vivia em Milão com a esposa e o neném, que ela ainda não tivera a chance de ter em seus braços. Eco havia conhecido muita gente ao longo de sua vida, mas fizera poucos amigos. Com o tempo, os conhecidos tomaram seus rumos, e os amigos... Bem, talvez não fossem tão amigos assim. Eco já não sabia do paradeiro de nenhum deles. Ela os havia procurado uma ou outra vez, mas não conseguira manter o contato. Na verdade, ela mudara muito; tornara-se áspera em resposta às peças que a vida lhe pregara e talvez as pessoas não se sentissem muito à vontade diante de seu frequente mau humor e sua pouca habilidade em desfrutar o ridículo...
Nesse dia, contudo, ela estava realmente disposta a falar com alguém; tentou telefonar para dois ou três números de sua agenda, mas não obteve resultado positivo. Então, voltou ao computador e mais uma vez abriu o correio – quem sabe algo novo teria chegado neste ínterim...
Nenhuma mensagem nova! Com um ligeiro suspiro, disfarçou seu desapontamento, acomodou-se em sua cadeira e retornou aos escritos...

À noite, ela estava exausta, sua cabeça doía ainda mais, sua nuca e ombros ardiam como se houvesse brasa sobre eles. Resolveu sair um pouco. Trocou de roupa, colocou os sapatos de passear, escovou os belos cabelos louros, lisos como águas serenas em alto mar, borrifou uma colônia suave por cima do casaco e saiu.
No carro, em direção ao centro movimentado da cidade, pensava em Narciso e Astréia. Como deveriam acabar? Ela os queria longe um do outro, pensava que talvez eles devessem recomeçar suas vidas e tentar ser felizes com outros pares. Porém, o tempo era curto demais para que se pudesse criar uma situação ideal para cada um dos dois; o romance deveria ser entregue com urgência. Eco precisaria de mais alguns dias, ou meses, para poder tecer as minuciosas artimanhas da felicidade chegando depois de uma triste e doída separação. Com a pressa da editora, a única saída seria fazer com que Astréia o perdoasse e o permitisse voltar para casa como se nada houvesse acontecido – a traição, os dias de tristeza, a vergonha, a humilhação...
De repente, Eco percebeu que não estava indo a lugar algum, dirigia em círculos há um longo tempo. Sentindo-se um tanto tola, estacionou seu carro num lugar qualquer e resolveu andar até um barzinho, ou um restaurante. Talvez encontrasse alguém interessante e pudesse trocar algumas ideias. Enquanto caminhava, via, por todo lado, gente rindo e falando alto. Pensava em o que os divertia tanto. Há muito ela não ria às gargalhadas.
Depois de ir e vir de um lado e de outro na larga avenida principal da cidade, Eco decidiu entrar num Piano Bar e pedir um chopp. Aquele parecia ser um local aprazível. As pessoas ali não eram tão barulhentas, e sorriam mais do que riam, isto a agradava. Sentou-se a uma mesa um tanto distante do piano, de forma a poder ouvir o almejado som de suaves vozes humanas, e aguardou ser servida.

Ao aproximar-se o garçom, Eco esboçou um sorriso franco de quem quer, finalmente, mostrar sua simpatia. Todavia, o homenzinho, que devia estar lá com seus próprios pensamentos, nem pelo dever de fazê-lo devolveu-lhe o sorriso. Eco, decidida a não desistir, olhou a sua volta para ver se reconhecia algum rosto na multidão, algum par de olhos que pudessem estar sendo dirigidos a ela, alguém com quem pudesse partilhar aquele momento.
As pessoas, contudo, lhe eram totalmente indiferentes. Subitamente, sua aguda e sensível percepção fê-la ver, como se através de um velho e cruel espelho encantado, que ela se tornara invisível aos olhos humanos...
Não havia ali um único ser disposto a dirigir-lhe um olhar ou uma palavra; impossível seria pretender que alguém pudesse estar propenso a ouvi-la.
Como se um raio a tivesse atingido, Eco sentiu o impiedoso golpe da solidão constatada, indiscutível. Simultaneamente, ela foi tomada por uma violenta fisgada no peito. Levando as mãos ao ponto de origem da dor, tão insuportavelmente dominadora, sentiu seu corpo contrair-se, fechando-se como uma ostra que, ao proteger-se, esconde seu misterioso e delicado interior.
Com a mente envolta em pensamentos irrequietos, Eco via passar à frente de sua visão obscurecida os filhos, a chuva da madrugada, o jardim... Que teria acontecido ao jardim? Ele desaparecera de sua janela como a alegria desaparecera de seu viver – sem que ela o percebesse. Não notara que aos poucos o brilho e o colorido davam lugar às coisas nocivas, pouco ditosas. Em meio a essas reflexões tardias, sem deixar evadir de si um mínimo ruído, Eco tombou – completamente sem vida - no áspero e álgido piso do bar.
Em segundos, havia a sua volta uma multidão de olhos atentos, que vinham de todos os lados. Pessoas pareciam brotar de todos os lugares. Vozes curiosas demostravam um interesse desmedido por aquela incógnita criatura. Todos se perguntavam quem seria, de onde teria vindo, o que teria lhe acontecido, por que estaria sozinha...

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