sábado, maio 15, 2010

Quando o sol não nasce por si


Quando o sol não nasce por si


Não são muitas as pessoas que admiram os mistérios que existem por trás das velhas moradas inglesas, hoje disponíveis aos locatários menos avisados. Elas são, na maioria das vezes, sobrados cheios de pequenos cômodos interligados por minúsculos corredores sem qualquer iluminação ou aquecimento solar.
Há quem duvide, mas as paredes dessas habitações centenárias relatam através de suas vibrações tudo o que têm visto e ouvido. Se um dia fores à Inglaterra e tiveres de hospedar-te em alguma dessas antigas “caixas de Pandora” – Fica atento!
Durante o inverno, anos atrás, enquanto dividia meu tempo entre o desconforto de um casamento conflituoso e a urgência de completar um romance vitoriano que escrevia, mudei-me para um pequeno e mal mobiliado apartamento de propriedade de um casal de armênios no distrito de Isle of Dogs, em Londres. Da janela de meu apartamento, próximo ao rio Tâmisa, podia-se ver, tanto quanto alcançasse a vista, dúzias de casas de aparência idêntica. Esta visão provocava-me, por razões que desconhecia na época, uma estranha combinação de sentimentos; eu sentia agonia e prazer.
Certa feita, numa manhã gelada, impossibilitada de sair, fiquei em casa a fim de recuperar-me de uma gripe que parecia estar querendo fazer parte de mim. No início da manhã, arrumei as camas, tomei um chá com biscoitos e, como não conseguisse ler ou escrever, aninhei-me numa delicada cadeira de balanço, próxima ao fogo e tentei pensar em nada. Aos poucos, fui-me encolhendo - não me sentia bem. Pensei que pudesse ser o frio simplesmente; talvez fosse o efeito dos remédios que tomara ou até a febre que aumentava rapidamente. De qualquer forma, havia alguma coisa estranha ocorrendo. Era como se eu não estivesse mais lá, como se algo estivesse me transportando a uma realidade que não correspondia àquela que eu conhecia...
De repente, vi-me diante de uma sólida cômoda de madeira escura, bem torneada, com enormes puxadores de ferro pesado e sem brilho. Estava ajoelhada sobre um pequeno tapete de cores opacas e procurava esconder, com muito cuidado, alguns papéis no fundo da última gaveta. Sentia-me acuada; sabia que ele poderia chegar a qualquer momento.
Com movimentos rápidos, porém cautelosos, escondi as folhas enroladas e atadas por uma fitinha de linho branco. Depois, sentei-me, aliviada, na delicada cadeira de balanço que herdara de meu pai. Ia já cochilando quando ouvi os passos malditos daquele homem horrível que tanto me desgraçava a vida. Tive medo, como de costume, mas levantei-me rapidamente e respondi aos seus urros de fera faminta. Desci as escadas correndo e dirigi-me à cozinha onde o fogo já aquecia, em uma grande panela de ferro, o alimento do animal.
Quase sem controlar meu tremor, disse-lhe que estivera atarefada com o bordado nos lençóis de Lady Hearthsworth. Contudo, ele não me ouvia, ele nunca me ouvia. Rapidamente servi-lhe o cozido quente, o conhaque barato e o pão que fizera no dia anterior. Enquanto engolia indistintamente a largos bocados tudo o que estava ao seu alcance, resmungava como se quisesse entreter a si próprio. Discursava sobre como fora seu dia no porto e todas aquelas coisas que aconteciam diariamente: roubos, brigas, discussões e ameaças de morte. Ao terminar o jantar, ele levantou-se, deu um grande e horroroso arroto de satisfação quase plena, tomou um último gole do conhaque e chamou-me para o quarto...
Os dias e as noites seguiam iguais. Minha única alegria era poder sentar-me na velha cadeira de balanço ou deitar-me sobre a cama e, à luz do azeite, escrever minhas histórias. Eram histórias de amor, nas quais donzelas solitárias esperavam ser salvas por heróis de barbas aparadas, mãos limpas e hálito agradável. Desde que meu pai morrera há alguns anos, morreram também minhas chances de um futuro como aquele de meus romances. Deixada só e com poucas reservas, vi-me obrigada a entregar-me àquele portuário a fim de evitar um destino talvez pior na zona do porto. Todavia, restavam-me os sonhos. Eu os escrevia e os vivia secretamente em minha imaginação ainda adolescente. Por duas vezes meu esposo me surpreendera escrevendo e, num comportamento bestial, queimara meus preciosos papéis em meio às brasas do fogão. Eu, desde então, procurava ser cautelosa, escrevia à tardinha antes de ele chegar, enquanto seu jantar era aquecido. A luz era pálida e meus olhos freqüentemente fraquejavam, mas sentia-me tão feliz em poder extravasar todo o conteúdo íntimo de minha alma que às vezes fugia-me o controle do tempo.
Foi num desses dias que ele chegou a casa sem que eu o percebesse. Subiu as escadas e deu-se comigo na cama, de bruços sobre um bloco de folhas de papel pardo, com uma pena encharcada de lágrimas negras à mão, a desfiar um longo rosário de paixões proibidas.
De espanto, saltei da cama derramando a tinta por todo o lençol de puro linho branco, agarrei-me aos papéis que continham o meu eu e tentei balbuciar algo – qualquer coisa que pudesse amansar aquele olhar medonho que me reduzia a um nada absoluto. Ele avançou sobre mim, esbofeteava-me como a um de seus comparsas portuários e dizia coisas que eu jamais pensara ouvir. Então ele tomou para si meus escritos e dirigiu-se à cozinha amaldiçoando tudo e todos a cada passo que dava. Contava de seus desencantos, e dos sacrifícios que tinha de fazer ganhar o seu dinheiro. Amaldiçoou nossa vida e nossa casa. Enquanto falava, já ao pé do fogão, lançava às brasas, uma vez mais, os meus sonhos postos à tinta. As chamas devoravam-nas e as transformavam em uma fumaça azulada – pálida e suave fumaça azulada... Nem ao menos tentei enfrentá-lo, não poderia. Não naquele momento.
Terminada sua empreita, ele tornou a esbofetear-me e, enchendo seu copo de conhaque, ordenou-me que lhe servisse o jantar. Fios de lágrimas e sangue corriam por meu rosto, que já fora jovial e alegre, e eu tentava contê-los com o pano que pendia de minha cintura por sobre o velho e gasto vestido bordado à mão. Ao terminar o jantar ele atirou longe a garrafa vazia, ordenou-me que apanhasse outra na despensa e que subisse ao quarto imediatamente. Iria vingar-se definitivamente. Em dias como este, em que se zangava e bebia por demais, ele me feria com o prazer característico das feras de sua estirpe.
Mas neste dia, não era medo o que eu sentia. Subi as escadas até o quarto, arranquei os lençóis da cama enquanto a besta despia-se e substituí-os por outros tão brancos quanto a palidez que tomara conta de minha pele e deitei-me quieta. Permiti-lhe então, que desonrasse, pela última vez, minha existência; o satisfiz em sua mais brutal índole animal.
Durante a noite, enquanto ele dormia pesadamente, com muita cautela peguei a minha cadeira de balanço e, arrastando meu corpo doído, levei-a para o andar de baixo, junto à porta de saída. Sem o menor ruído, retornei ao quarto, fechei as janelas com a tranca e tirei da última gaveta da cômoda meus antigos escritos, algumas folhas pardas, ainda mudas, minha pena, o que sobrara de minha tinta. Ao sair do quarto, derramei cautelosamente o azeite da lamparina ao redor da cama, estendi então um risco do mesmo azeite até a porta, tranquei-a atrás de mim, ateei fogo à fina linha que escorria próxima aos meus pés e saí, como quem sai de uma reunião de amigos – em paz.
Do lado de fora da casa, junto aos meus restritos pertences, sentada, imóvel, em minha cadeira de balanço, percebia a chegada de um grande número de pessoas. Todos traziam vasilhames com águas e ferramentas para combater o incêndio que se alastrava pela casa. “Há alguém lá dentro?” me perguntavam. “Ela está ferida”, ouvi alguém dizer, “Deve ter caído ao fugir”, uma outra pessoa concluiu... Eu os ouvia, mas não podia responder-lhes. Por fim deixaram-me lá, só, quieta, enquanto lutavam heroicamente contra o fogo que ardia com uma fúria impressionante. As paredes de pedra resistiam às chamas, mas o que havia entre elas era consumido pelo fogo que transformava tudo em fumaça – uma fumaça negra e mal cheirosa.
Conforme o fogo ia sendo finalmente controlado, eu podia vislumbrar meus dias futuros - Os vizinhos viriam ajudar-me a reconstruir o que fora destruído. Alguns o fariam por piedade, outros em troca de pequenos favores. Eu, provavelmente, passaria a receber visitas freqüentes de portuários e já não receberia encomendas de bordados. Contudo, nada mais me importava. Com o tempo, as casas iriam multiplicar-se naquela rua, as pessoas tornar-se-iam cada vez mais indiferentes umas às outras. Ninguém mais se incomodaria com os meus escritos, somente as paredes daquela casa se lembrariam do ocorrido – mas quem dá atenção às histórias que as paredes contam?

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