quarta-feira, setembro 15, 2010

Desencontros do Eu na busca interior, e possibilidades de reencontros na observação do outro



Maria Lígia Conti

Minha identidade é constituída a partir do que extraio de meus curadores ao longo de minha vida, num processo de alienação. Depois, devo me separar deles para constituir o meu Eu. (Ricardo Goldenberg)


A busca do autoconhecimento e a fragmentação do ser para a constituição de uma presumível unidade têm sido, aparentemente, dois objetivos bastante claros para muitos de nós. Essa busca desenfreada do autoconhecimento e da constituição do ser uno, que fica, tantas vezes, limitada a informações de bases empíricas, publicadas em um enorme volume de livros que se espalham por intermináveis prateleiras nas livrarias, e “lições de gibis” postas em revistas femininas e de atualidades, acaba por nos levar de fato, pensando com Ricardo Goldenberg, a uma grande confusão na identificação do Eu (Id) e do eu racional.
De acordo com a análise feita por Ricardo em suas duas palestras, Utopia na personalidade crise e superação da neurose da felicidade perfeita e Utopia do conhecimento , o autoconhecimento é ilusório, uma vez que somos o que nosso eu inconsciente determina, e dele nada sabemos. Refletindo, ainda com Ricardo, tenho o seguinte panorama: o indivíduo, sem o outro, se desconhece, ou seja: eu não sou sem o outro, que me diz o que sou através do que falo a ele, do que deixo de falar e de como ele me ouve e, ainda, do que falo de um terceiro. Bastante interessante e de difícil exercício, essa descoberta do Eu, que não levará ao autoconhecimento, porque, na verdade, nada sei de mim. Porém, através da uma análise constante, que exige uma observação permanente sobre o que dizemos e o que não dizemos para o outro e sobre o outro, poderemos chegar a identificar alguns de nosso modos de agir e pensar – e, então, poderemos dizer que sabemos um pouco de nós mesmos, ainda que esse saber não nos desvincule do outro, uma vez que estamos, nós e ele, em constante movimento.
Quando falo de mim, eu não sei o que estou dizendo, mas quando falo de você, eu, com certeza, estou falando de mim o essencial. (Goldemberg 3)
Quanto à felicidade, outra quimera, segundo Ricardo, descobrimos que foi, na Grécia antiga, um dos componentes do pensar a sociedade e administrar a polis. Esse pensar a felicidade a partir do conceito do “bom uso dos prazeres”, em princípio, daria a ideia de um pensar a “sociedade como um todo” (expressão muito moderna e de uso indiscriminado, conforme se pode observar em muitos textos contemporâneos), porém, como nos esclarece nosso palestrante, esse pensar era, na verdade, um tentar pensar a individualidade – o que acredito tivesse se aproximado do possível num mundo de milhares de habitantes. Nos nossos dias, contudo, se tivermos a intenção de nos presentearmos ou presentear alguém com a felicidade (e sua co-relata liberdade de bom uso dos prazeres), com certeza encontraremos obstáculos muito além dos de possível solução oferecida por um governo ou qualquer outra entidade. Mas, talvez essa seja mais uma das barreiras que o cristianismo cuidou de construir frente aos meus olhos (e que ainda não consegui desconstruir – e assumo a responsabilidade de minha escolha ao ouvir o que me foi dito)...
Bem, extensas, as duas palestras nos trazem coisas novas e coisas já sabidas que nos fazem bem relembrar – e uma vez mais ouvir. De todos os desvios, devaneios, ilustrações e dados oferecidos nas falas de Ricardo, vou me apropriar, por um momento, de uma, especificamente, que me leva a considerar a aula (e por sua vez, a sala de aula, o ensinoaprendizagem, os livros didáticos, a escola e o cotidiano escolar): “Para pensar, preciso da linguagem e a linguagem me vem de fora”.
Ora, esse desenvolvimento do raciocínio me é de extrema importância e relevância na concepção de um livro didático e no fazer da aula. Se tenho um indivíduo em sala de aula, posto (por si ou um terceiro) a me ouvir (eu professor que supostamente sei daquilo que falo), e me limito no uso de uma linguagem que, naquele momento, é nova para aquele indivíduo, como posso esperar que ele pense, senão como reprodução daquilo que digo? Ou seja, se “o material do pensar” que lhe ofereço é x, caso ele não tenha acesso a outros componentes y, z etc, esse aluno/essa aluna tenderão a reproduzir minha fala, meu pensar e, deduzo, não haverá um escape desse círculo que se torna vicioso. Isso me leva a considerar a valia da abordagem interdisciplinar no ensino escolar – considerar o outro, levar em conta o cotidiano escolar, o meio em que vive o aluno/a aluna, a origem social dos indivíduos, sua bagagem cultural, seus modos de desfrutar dos prazeres. Essa abordagem geraria indivíduos mais pensantes, uma vez que seus “eus” estariam sendo constituídos a partir de um reflexo real de seus “Eus”, e não de um regurgitar vazio de sentido derramado sobre um grupo, como se este fosse homogêneo – uno – uma massa.
Penso então, na questão do livro didático – “feito para todos”. Quem exatamente seriam todos? Todos os brancos, e os índios e os negros, os fisicamente hábeis, e os deficientes físicos, os meninos, as meninas, e os ateus, e judeus, cristãos, mulçumanos, hindus, heterossexuais, homossexuais, indecisos, ricos, pobres, vencedores e vencidos?
Não. O livro didático é feito para uma massa supostamente não composta por indivíduos pensantes. Uma massa que será amalgamada num único e limitado pensar, num aceitar o ponto de vista daquele que “conta” a história, seleciona a “melhor” literatura, indica o rumo das ciências, traça o roteiro do futuro, a partir do olhar do dominador sobre o dominado.
E eu, o professor? O que me compete?
A mim me compete perceber esses truques, instruir-me no maior número de linguagens que me forem possíveis digerir, fazer minhas escolhas e demonstrar aos alunos e alunas que fiz escolhas a partir de um saber que é provisório, pois vivo e me movimento, e oferecer-lhes alternativas, propiciando-lhe momentos de diálogos que acabarão, como nos mostra Ricardo Goldenberg, por mostrar a mim mesma “o que eu não sabia que não sabia” – e esse movimento enriquecedor poderá, enfim, trazer algum entendimento de quem somos – senão no conceito psicanalítico de ser, pelo menos no conceito político de ser cidadão/cidadã livre para pensar-nos e definirmos com consciência o que julgamos ser melhor uso dos prazeres.

O que ganha e o que perde quem busca conhecer a si mesmo? Seria o oráculo de Delfos, afinal, uma maldição?
‘Quem sou eu’?


Para Goldenberg, a psicanálise deve apostar na nossa capacidade de responder a esta pergunta e de criar sentidos para a nossa vida. (Texto introdutório do vídeo: Utopia do autoconhecimento3)
Para mim, o oráculo não é uma maldição, mas um impulso para que olhemos o outro e nos reconheçamos nele que se reconhecerá em nós, gerando movimentos de entendimento entre os diferentes seres (em suas n versões). Assim com o Goldenberg sugere que a psicanálise deve apostar nessa nossa capacidade, acredito que o professor deve investir nessa empreitada, cunhando possibilidades de criação de sentidos para as vidas.



04/06/2010
Publicado(com adaptações à midia) no Jornal Cruzeiro do Sul - Sorocaba - 13/09/2010