quinta-feira, maio 13, 2010

Um beijo a Sinhana



Numa dessas noites em que entregamos a Deus alguns momentos que não nos foi possível preencher com tarefas diárias e lucrativas, encontrei-me pela primeira vez num centro espírita onde se desenvolvia um trabalho com pretos velhos.
Sobre a mesa, no meio da sala, havia uma jarra d’água que por alguma razão me prendia a atenção. Aos poucos, senti-me completamente desligada daquela realidade e deixei-me transportar à minha infância; um tempo em que a natureza e eu éramos indistintas.
Minha família tinha um belo sobradinho no Cerrado, não distante do centro de Sorocaba, onde meus irmãos e eu estudávamos. Éramos muitos filhos e cabia aos mais velhos cuidar dos mais novos.
Maria Déa, minha irmã mais velha, era a que me levava ao grupo escolar. Minha mãe nos dava dinheiro para as passagens de ônibus, mas costumávamos ir a pé. O dinheiro era reservado para um picolé, um doce, ou, não raro, para uma fotonovela que compraríamos na Tabacaria da Sé, nos dias em que corajosamente matássemos as aulas. Naquele tempo, não era fácil matar as aulas; a cidade era pequena e as crianças uniformizadas, em horário de aula, não passavam despercebidas pelas ruas do centro. Porém, minha irmã era astuta; com a sabedoria que têm as irmãs mais velhas, ela me conduzia por entre as árvores e bancos da praça da Sé e, com com muita agilidade, num minuto, estaríamos no Zoológico da cidade que ficava então, às margens do rio Sorocaba, sob a ponte Delosso..
Deinha era sempre a primeira a ler a fotonovela; ela era a mais velha, a mais sábia e – a mais forte.
Enquanto aguardava a minha vez, gostava de me deitar à beira do rio. Passivamente deixava-me envolver por aquele ruído quase inaudível que aos poucos fundía-se ao ruído da vida que fluía em minhas veias.
Num desses dias, lembro-me de estar muito cansada, quando me deitei, como de costume, enquanto Déa buscava um lugar à sombra para ler em paz. Acho que adormeci.


De repente ouvi a voz de Sinhana, que me chamava aos gritos: “Venha cá negrinho matreiro. Não vê que o Sinhozinho quer visitar a roça?”
Sinhana sempre me chamava aos gritos. Ela era uma boa mulher; talvez fosse mesmo a minha mãe – não sabíamos bem. No dia em que eu vim a o mundo, veio também um outro moleque; de igual porte e semelhante feição. Fomos, os dois, colocados juntos, para que uma só negra nos amamentasse. Sinhana, por sua vez, teve de dar seu peito ao filho de Sinhozinho que havia nascido alguns dias antes e que não podia ser alimentado pela mãe pálida e franzina.
Alguns anos mais tarde, o moleque que crescera comigo foi vendido para a fazenda do Sr. Aguiar, do outro lado do rio. Sinhana nunca soube ao certo qual de nós era seu filho, mas dava-lhe conforto pensar que podia ser eu.

Aos berros de Sinhana, levantei-me de um só golpe e corri para ajeitar o cavalo predileto de Sinhozinho. Era um baio grande e ligeiro – inveja dos arredores.
Sinhozinho pegou as rédeas do animal e num gesto já conhecido meu, ordenou-me que corresse. Ele sempre me levava consigo as suas cavalgadas na roça; receava ser molestado por algum “negro injusto”, dizia.
Nunca entendi bem o porquê daquele medo; era ele quem tinha o berro preso à sela, era ele quem comandava o feitor e, na pior das hipóteses, era ele quem tinha o baio. De qualquer forma, gostava de levar-me consigo.
Ao seu sinal, então, pus-me a correr em direção à roça. O baio trotava acelerado e, não raro, passava-me a frente.
“Corre moleque”, dizia Sinhozinho. “Corre que não vim aqui para passear.” Isso sempre acontecia assim.
Um dia, porém, decidi que era hora de mostrar àquele homem quase sem beiço que não poderia continuar correndo daquela maneira; minhas pernas eram fortes e ligeiras, mas não poderia continuar correndo à frente do baio, varrendo sempre o caminho por onde eles passariam.
Foi então que resolvi fugir. Já ouvira falar de muitos negros fugidos e sabia que era arriscado; mas resolvi tentar minha sorte.
À noite, depois que todos foram dormir, sentei-me ao lado de Sinhana, ao pé do fogão, comi um pouco de canjica com bolo de fubá que ela fizera, e falei-lhe de meus sonhos de viver livre, de ir ao mar e lançar-me, quem sabe a nado, às terras de África. Tantas histórias eu já ouvira de Àfrica, histórias cantadas pelos negros nas roças, ou nos cantos das senzalas. Sinhana arregalou seus enormes olhos negros e danou a dar-me tapas por toda pele. “Negrinho bobo, você foge, eles te pegam e Sinhana fica sem filho nenhum”.
Senti pena de Sinhana, mas meu sonho de liberdade era maior do que qualquer outro sentimento e, antes do alvorecer, embrenhei-me na mata às margens do rio que havia atrás da casa grande e segui o rumo da correnteza que me levaria ao sol. Eu sabia que o sol nascia no mar e era para o mar que eu queria ir.
Não sei quanto corri. Sentia fome, minhas pernas tremiam e minha vista falhava. Caí ao chão exausto e acho que adormeci.
De repente, num susto, abri os olhos e dei com dois homens enormes sobre mim; um branco e um negro. Eles não fizeram perguntas. Não pareciam ter dúvidas. Aliviaram um pouco da tensão em que viviam sobre mim e, por fim, ataram meus pés a pesadas correntes.
“Corre moleque”, disse o negro.
Meu corpo todo doía, minha pele sangrava e mesmo que não estivesse amarrado, não poderia correr – mas tive de andar. Andei um caminho que parecia não ter fim; um caminho que me distanciava, cada vez mais, do sol...

Sinhana olhava de longe, com os olhos cheios d’água e eu evitava encará-la.
Foram cinquenta chibatadas no couro nu. O número havia sido estipulado pelo filho de Sinhozinho que, apesar dos choramingos de Sinhana, não parecia ter no peito qualquer coisa que se assemelhasse à piedade.
Passei toda a noite atado ao tronco. Pela manhã, fui solto após um discurso de Sinhozinho a todos os negros que pudessem estar pensando em fugir.
Fui, então, levado à senzala e lá pude chorar baixinho toda a dor do físico e da alma...
Os dias seguintes se passaram sem muita anarquia ou novidade. Era sempre assim depois de uma “boa lição”.
Voltei a correr à frente do baio e passei também a trabalhar no corte de lenha para o fogão, no transporte do angu para os negros na roça e no debulhe do milho.
O filho do Sinhozinho dizia que se estivesse trabalhando, não estaria sonhando com bobagens.
Era verdade. Eu não sonhava com bobagens. Tudo com que sonhava era o mar. Mas não ousaria buscá-lo tão cedo. Dera minha palavra a Sinhana.
Certa feita, quando empilhava a lenha que seria cortada, meti minha mão num feixe e deixei-me picar por uma aranha que ali fizera seu ninho. Foi tanta a dor que senti que me pus a correr como um louco.
Sinhana, sem saber o que se passava, implorava para que eu parasse. O feitor ordenou-me que voltasse imediatamente, e eu corria desesperado em direção à água fresca do rio que deveria acalmar a minha dor.
Sinhozinho, atraído pelos gritos, saiu à varanda com seu berro em punho e deu três tiros.
De súbito, senti-me rolar lenta e pesadamente, barranco abaixo. Minha visão estava turva, calafrios e ondas de calor percorriam simultaneamente todo o meu corpo. Deixei-me, então, cair n’água fria e límpida do rio que chamavam de Sorocaba.

Ao longe, Sinhana me chamava aos gritos.
Já não sentia dor quando, passivamente, deixei-me envolver pelo estrondoso ruído das águas que violentamente fundia-se ao silêncio que interrompia o fluir da vida em minhas veias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário