sábado, maio 15, 2010

É assim que eu vejo a mãe




Cheia “dos enfeite"

A mãe é desse jeito: nunca foi à missa, não sei bem porque, mas é fervorosa fã de santos. É fã mesmo que eu quero falar, porque a mãe não é exatamente devota de santo. Ela é fã, do tipo que faz torcida em dia de festa e xinga quando a final resulta em derrota. Que eu sei, a mãe é pouco de ir ao cinema, ela gosta mesmo é filme em DVD. É bem moderna a mãe. Mas já teve seu tempo de ir ao cinema, com namorado que nem podia pôr o braço no ombro dela, senão levava um esculacho. Ela conta que um dia, na matinê, falou pra um moço que ele ia ganhar um terninho de marinheiro se ele se comportasse na sala de cinema. Eu até imagino o carão que o coitado passou.
Sofre de nada a danada, aliás, se sofre, ninguém fica sabendo. Lá tem suas canseiras agora que já criou tanto filho, mas nada que a faça deixar de trabalhar como se tivesse no começo da vida - quando a lida é necessidade gritante. Mas eu me lembro bem do dia em que ela ficou doida. Pouca gente fala disso, talvez porque nem ficaram sabendo da conversa inteira. Mas ela viu na casa de uns velhos, lá cidade de Salto de Pirapora, uma tal de uma cristaleira que tinha pertencido a famílias muito antigas, e depois de ver o móvel, a mãe endoidou. Danou a perguntar se a gente tinha visto uma tal de jaqueta verde, que ninguém nem sabia da existência e, aí, esqueceu de um montão de coisas e ficou mesmo parecendo doida. Eu, que tenho fé na cura dos doidos, levei lá na casa do pai, um homem adepto das pequenas bruxarias. E ele fez lá uns riscos no chão - trancado no quarto junto com ela, fez reza forte e, por fim, lá saiu ela - "curada", sem nem saber se o que eu contava era verdade. Mas que é, é!
Quando eu fiquei moça, me lembro de uma bronca enorme que ela me deu, "em público", porque eu esqueci de esconder a minha "fraldinha" lá no banheiro. Já se vão lá quase quarenta anos que isso aconteceu, mas lembro como se fosse hoje mesmo - a vergonha que eu passei. Mas adivinhar é que a gente não adivinha as coisas. Se ninguém ensina, leva um tempo pra aprender sozinha. Meu primeiro namorado, que eu trouxe em casa pra conhecer a família, era um moço mais velho do que eu, bonito e formado em engenharia. A mãe, na época, fazia Direito, nunca que ia ser advogada, mas queria provar que podia ser mais que uma "nega beiçuda", como o pai comparou ela um dia. Meu namorado adorava conversar com a mãe. Ela sempre soube de muitas coisas, e era bem divertida. Então, ele chegava em casa, me dava um beijinho e se punha na cozinha pra conversar com ela - até a hora de ir embora. Sempre foi divertida a mãe...
Quando eu completei onze anos, lá fui eu trabalhar no consultório do pai. Eram dois médicos, o pai e um pediatra. Eu trabalhava depois do almoço, quando saía da escola. Um dia, a mãe falou, assim como quem não quer nada, que ela queria um vaso de flor de azaléia que tinha visto na floricultura. Custava noventa cruzeiros - meu salário inteirinho de um mês, mas eu comprei. Um tempinho depois, ela deu o vaso pra Santa Clara, que era pro meu irmão Alex sarar de alguma doença que eu não me lembro qual era. A flor secou como se fosse arruda carregada de inveja. Ela disse que deu uma coisa que gostava muito porque o Alex era muito importante. Eu acho que entendi bem isso uns anos depois, mas na hora foi duro de verdade. De qualquer forma, eu sempre cuidei dos meninos como se fossem meus filhos, então, acho que valeu o pagamento.
Vive dizendo que quer ficar pra semente. Ela fala que a vida dela é tão boa, que se ela tiver de voltar, quer ser ela mesma, de novo. O palavrão da mãe é "bosta seca", mas se ela está mesmo muito brava, então ela fala "merda - com todas as letras!". Ultimamente, ela tem falado mais merda do que bosta seca....
Finge que não tem medo da morte, e pra provar que seu fingimento é de verdade, ela não procura médico quando precisa, não se cuida direito e não faz o que deveria fazer na idade que tem.
Quando o nosso irmão Hendrix nasceu, ela ficou doida de raiva porque os médicos tiraram dela as esperanças de ter mais filhos. Ela queria doze e só ficou com sete. Foi pena que o Hendrix morreu, ele fez falta pra mim - ia ser meu afilhado. A mãe ficou tão nervosa que disse que era exatamente por isso que ele morreu - porque eu era pé frio. A mãe às vezes é malvada, e nem percebe direito o que fala. Ela assustou muita gente com a cumplicidade dela com tal Santa Clara, eu mesma já vi gente morrer depois da mãe entregar a tal pessoa à santa, em troca de sol ou de outro agrado. Mas agora parece que ela parou com essa amizade. Eu acho é bom.
É uma mulher interessante a mãe. Todo mundo que conhece ela um pouco adora ela. É divertida, cozinha como se fosse uma cozinheira internacional, de Paris ou Roma, e fala de um monte de coisas interessantes. Mas, se ela se desagrada de alguém, aí "a coisa muda de figura", como ela diz. A mãe não poupa pólvora quando se trata de desabonar uma pessoa de seu desagrado. Então, o melhor conselho que eu dou é que as pessoas se mantenham amigas da mãe - é mais saudável pra todo mundo.
Como ela é advogada e porque sempre leu muito, a mãe é boa também nas escritas, especialmente se é pra mandar uma carta pra gente - quando a gente tá bem longe dela. Parece até que o coração dela só sabe gritar de longe, de pertinho, ele se cala. Acho que ele é do tipo encabulado, ou então é outra coisa que eu ainda não entendi.
Na escola, ela não interferiu muito, que eu me lembre. Mas eu lembro que um dia, minha irmã Deinha não quis mais estudar e a mãe colocou ela pra ser a empregada da casa – a Deinha voltou de carreirão pra escola, até virou filósofa depois de uns anos. Uma coisa com que a mãe não se conformava era de eu só gostar de livros finos, e ela ficou foi é muito agradecida ao José Mauro de Vasconcelos, quando eu li um livro dele inteirinho. E depois outro e depois outro... Acho que ela nunca percebeu que o que fez a diferença foi que o estilo dela não era o meu. Também isso eu tive de aprender sozinha, e como eu já disse, sozinha, leva um pouco de tempo...
Cheia de vaidade, já foi a mãe. Na verdade, ela tem é fases. Na fase da vaidade ela ficou foi linda. Seus olhos verdes, brilhando que nem duas esmeraldas, na pele bem bronzeada, faziam dela a mulher mais linda do mundo. Dava gosto na gente apresentar a mãe. Todo mundo falava da boniteza dela. Até hoje ela é linda, acho que é por causa da risada estabanada dela. Parece até que vida não tem mesmo problemas. Mas eu acredito que ela é uma artista, uma poeta a quem Fernando Pessoa não saberia explicar.
De todos os cremes do mundo, tudo que é coisa de manter a belezura, a única coisa que já vi a mãe usar, foi o Leite de Colônia e o perfume Givanchy. Hoje em dia, ela até que investe mais em produtos pros cabelos e um pouco de creme, mas o que trouxe ela até hoje, assim quase que toda conservada, foi o tal Leite de Colônia, nunca teve uma espinha na vida.
Das artes, ela entende da culinária. Mas já foi tricoteira das boas. Lembro bem de cada blusa que me fez. Lamento não ter guardado alguma, pra memória da família. Cada uma tinha uma história. Mas, de repente, são tantas pessoas na família e é tanta miséria neste mundo, que um dia a blusa já não serve mais pra um, e lá se vai pra agasalhar outro.
De seu guarda roupas, nada me causa inveja, mas adoro seus brincos. Queria ter a imponência que mãe tem. O peito erguido e a coragem de usar aqueles brincos enormes. Eu acho até que ficariam bem em mim, se eu tivesse a postura dela. Mas eu sou assim, meio encabulada, meio que sem muita certeza da minha boniteza. Quem sabe, quando eu ficar mais velha ainda, eu adquiro um pouco daquela "falta de vergonha" de ser mais eu.
O pai é que tenta e tenta agradar a mãe, mas não é tarefa fácil, coitado. Um dia, ele deu pra ela um porta pó-de-arroz que tocava música. Era lindo. Já faz muito tempo que isso aconteceu. Ela não gostou muito, e eu, pra ajudar ele a acertar, fui contar o que ela disse: "O que eu vou fazer com uma caixa de pó-de-arroz, que toca música?" No fim, ela ficou muito brava comigo, de verdade. E ele ficou triste - acho que preferia não saber. Depois da caixinha de pó-de-arroz, já tiveram muitos outros presentes, mas eu fico é de boca fechada.
Já completou setenta-e-cinco anos, a mãe. Vai completar mais um neste maio. A vida dela é de causar inveja em muita gente. Nada faz falta, nada é problema, nada tem mais importância do que o hoje. Acho que agora ela aprendeu a rezar, porque volta e meia leio uma palavrinha de amor cristão nas mensagens dela enviadas às netas e noras, por correio eletrônico. Mas Deus está de bem com ela, porque ela é agradecida do presente da vida. Acho que ela sabe disso, por isso ri tanto.
Gosto de ver a mãe aos domingos, gosto de saber que ela está lá, caraminholando sobre qual vai ser sua próxima aventura, seu próximo investimento financeiro - se em flores, panelas ou ingredientes culinários. Eu amo a mãe, com seus sins e nãos e por mais que fuja de alguns de seus exemplos, acho que no fim vou ficando um pouco parecida com ela, porque os bons exemplos são fortes e acabam sendo mais fortes do que os outros.
Que o Senhor abençoe a mãe e o pai e os meus irmãos.
Que a gente possa ainda ter muitos anos junto com ela e suas maluquices - a "vó maqaqa".
(27/02/2005)

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