terça-feira, julho 10, 2012

Esse é um teste!

Lígia, postando para testar a ferramenta.

domingo, novembro 27, 2011

UM PEDAÇO DE MIM


Sou incapaz de dizer do que sinto. A urgência da vida me consome e não me sinto apta a estipular prioridades, definir o certo, entender os mistérios escondidos atrás das opções muitas que brotam nas variadas estradas que surgem a cada dia.
Fiz uma escolha. Estou numa estrada rumo a um lugar desconhecido – no sentido mais pleno do termo “desconhecido”. Foi uma escolha entre as alternativas disponíveis. Não acredito em estradas sem retorno, mas quero crer que as escolhas que fazemos têm um propósito e que devemos seguir.  
Cansei da vida monótona, do esperar que um dia as coisas melhorem, que governos acordem para a justiça, que as religiões se unam – ou sumam definitivamente -, que os ricos se conscientizem, que os pobres de fortaleçam, que a polidez humana chegue, enfim, ao brilho que deveria ter.
Cansei de esperar.
Cansei de esperar pelas naves extra-terrestres, que viriam um dia nos resgatar e levar-nos a todos a uma dimensão em que tudo é maravilhosamente justo, perfeito e harmônico.
Cansei de esperar o dia 1º de cada novo ano para “a grande mudança”, a “grande virada”.
Cansei de esperar que conferências mundiais resolvam as questões da água, da camada de ozônio, das florestas, da gente que morre de fome, das crianças sem acesso à educação, dos pais sem acesso à dignidade humana.
Fiz então minha escolha.
Cansada de esperar, o meu ânimo passa a ser conduzido pela possibilidade de agir. Uma ação individual é, certamente, água em xícaras no enfrentamento de um grande incêndio. Mas, embora cansada, não abro mão da utopia – que não venham os extra-terrestres, que não retornem os avatares, que não chegue o dia do juízo – não importa, há entre nós muita gente que faz, muita gente cansada de esperar – hemos de conseguir apaziguar esse incêndio.
Tomei uma estrada.
Onde me levará não sei – quanta água poderei de fato carregar, não sei. Mas vou seguir.
Contudo, minha pequenez é imensa. E nessa pequenez, nessa infinita insignificância, tenho medos. São tantos os medos que, a todo o momento olho para trás. Tento ver a estrada de onde vim, num movimento instintivo que busca, talvez, a certeza do poder retornar... Não quero voltar, quero seguir. Mas sinto medo.
Nessa estrada que tomei, sei que não estou só. Posso sentir as muitas mãos que me suportam, mas receio pelas mãos que tenho de soltar – ainda que seja só fisicamente, ainda que seja por pouco tempo, ainda que seja um soltar carregado de linhas que fortalecem os laços, ainda que sinta essa necessidade urgente de levar minha xícara de água, ainda que acredite no movimento  -  esse soltar das mãos me mata um pouco por dia.
Penso que começo a perceber o sentido do doar. Doar é fortalecer, sem dúvida. Doar é um ato reflexivo, pois o que vem do doar para aquele que doa é algo infinitamente bom, em termos de alegria, satisfação e prazer. Porém, doar é dar de si. E dar de si, ao mesmo tempo em que representa agregar, representa partilhar, repartir, dividir...
Minha estrada se faz ampla. O incêndio está por todos os lados. Mas xícara de água que levo foi cheia por anos de convivência com gente muito especial, é uma água de nascente abençoada, bem cuidada e protegida com muito amor. E não levo toda a água de que disponho. Deixo naquelas mãos que por um pouco tempo solto, a parte maior da minha fonte – e rezo – rezo para que saibam disso, que possam sentir o quanto as amo e o quanto não queria soltá-las.
Porém, se não as solto, volto ao cansado esperar – e já não se pode mais esperar, já não há tempo para sonhar de olhos fechados. Assim, abro meus olhos, e realizo meus sonhos.
Minha estrada já não é tão longa, posso ver o retorno logo ali à frente. É um breve caminhar, talvez o medo me deixe, talvez não, mas vou manter na minha lembrança as mãos que soltei e, em laços mentais, as manterei junto das minhas, não poderei soltá-las completamente – não quero soltá-las - jamais. Já já eu volto, e trarei minha xícara cheia de outras águas que, quem sabe, poderão acalmar os incêndios de cá...
Aos monstros que me cercam, aos obstáculos que aparecerem em meu caminho, ainda que impregnada de dúvidas, enfrentarei com o claro sentimento de que em todas as opções oferecidas havia riscos e boas possibilidades – fiz uma opção não só por já não poder mais esperar, fiz uma opção porque a estrada por onde caminhava tripartiu-se. Não acredito em estradas certas ou erradas, e não tenho esperanças de ter tomado a menos tortuosa, só espero ter tomado a melhor estrada para este momento. (27/11/2011)

sexta-feira, maio 20, 2011

Carta aberta a minha mãe

(painting by Thea Burger - http://shadesoflife-thea.blogspot.com/)


Oi, mãe, bom dia.

Tudo bem?
Tá ocupada?

Senta aqui um pouquinho, vamos conversar.

Eu já te disse que te amo?

Então... tem outras coisas que também talvez não te tenha dito muitas vezes – é sobre isso que quero conversar.

Sabe, a maioria das minhas amigas já não têm mais suas mães. E eu sou uma pessoa muito feliz por ter você. Não só pelo status de ter mãe viva, aos 56 anos de idade, mas por ter você.

Algumas vezes na vinha vida, como é natural (está em todas as revistas de Educação), senti vontade de ter outra mãe, me achei injustiçada por você, senti que não me amava... Lembro-me com frequência que, quando estudava no colégio das madres, falava-se que se deixássemos os sapatos virados pra baixo, a mãe morria – algumas vezes eu virei os meus sapatos – segundos depois, como é natural, eu corria lá e desvirava e chorava minha impotência de vingança. “Bater na mãe” endureceria o meu braço pela eternidade e, no caixão, ele deveria ser serrado para poder entrar, e minha alma carregaria o braço solto – duro – até o dia do juízo final... e eu chorava minha impotência. Poderia culpá-la por ter me colocado em colégio de freiras – mas, agradeço, fez muita diferença – positiva – na minha vida.

Lembra-se de meus diários? Puxa vida, eram os meus “únicos e verdadeiros” amigos – e você os lia e “comentava”... Ninguém acredita nisso quando eu conto – mas acho que é natural, deve estar em alguma revista também...

Sabe, quando me ponho a recordar minha infância e juventude, a pessoa que vejo mais presente em toda a minha vida é você. E ainda assim, conversamos tão pouco...

Eu também tenho boas lembranças – muito boas lembranças – lembra-se da noite anterior ao meu primeiro casamento? Você estava na cozinha com a sua melhor amiga, enquanto eu eperimentava o vestido de noiva (que sua amiga fez pra mim), e você me disse algo assim: “Filha, você não precisa se casar. Se estiver grávida, eu viajo com você, você tem o filho e eu o crio como se fosse meu”.

Levei tantos anos para entender “tudo” o que estava contido nessas frases – tantos anos...

Naquele momento eu queria ter dito: “Mãe, eu não estou grávida e não quero casar, mas ele disse que se não casar com ele, ele vai contar pra todo mundo que a gente já transou...”. Mas eu não disse nada, só chorei minha impotência.

Sabe, no fim, foi bom ter casado com aquele cara – sem ele, talvez jamais tivesse saído do meu mundinho de desejos de vingança e de impotência – bom, na verdade, ele não foi o único responsável pela minha saída daquele estado de coisas, a vida me foi “farta” em “oportunidades”.

Mas, vamos voltar a nós.

Eu queria que soubesse de algumas coisas muito importantes pra mim.

Quero dizer que amo meu pai – muito! E que sei que ele me ama – muito! Mas em toda a minha vida eu sempre soube e sempre senti e percebi que ele é meu pai, não meu homem. Sempre soube disso. Eu não o desejaria pra meu homem – sempre gostei de homens mais jovens... rsrsrsr Às vezes senti que te incomodava o nosso amar – meu e dele. Talvez, se conversássemos mais, pudéssemos ter falado sobre isso. Mas falo agora. Meu pai é tão querido pra mim quanto é minha mãe. Entre nós existe também menos conversa do que eu gostaria que houvesse – e houve vezes, acredite – em que cogitei “virar os sapatos” pra ele também...

Sabe o que eu penso, mãe? Penso que a gente complica muito a nossa vida – todo mundo. Acho que é normal! Mas é um porre. Sinto que eu poderia conversar mais com meu filho, e sinto que muita coisa entre nós está sendo deixada de ser dita – por motivos diversos... Com a minha menina é diferente – acho que nos falamos algo bem perto do tudo.

Mas quer saber? Por incrível que pareça, sinto que aprendi a falar, com você...

Tenho lido muito, você sabe – há alguns anos comecei a ler e acho que já compensei tantos anos sem leitura no passado. Nessas leituras vou descobrindo coisas de mim – vou me vendo e me percebendo com olhos cada vez mais aguçados... E acho que vou gostando de mim. Isso é muito bom, porque na medida em que gosto mais de mim, sinto que algo se transborda e se espalha a minha volta.

Nesse espalhar, deixei muito “gostar” e “amar” chegar até você, sabia?

Eu aprendi muito na minha vida, mãe. E das coisas que aprendi, gosto de ter comigo o reconhecimento de quem me ensinou, quem me deu as oportunidades – porque acredito muito na gratidão e desejo agradecer àqueles que me ensinam e me dão oportunidades.

Assim, queria te agradecer por algumas coisas. A lista não é muito longa, mas acho que pode ser um bom começo.

Quero te agradecer, do fundo do meu coração:

- pelos nove meses que me carregou, sendo que havia opções de não fazê-lo;

- por ter me carregado os nove meses e ter se cuidado, de forma que eu nascesse forte e saudável;

- por ter cuidado de mim, sempre que eu estive doente ou, de alguma forma, mais dependente;

- por ter sempre garantido o meu sustento e estudos,

- por ter me ensinado a ser justa e honesta;

- por ter enfeitado as paredes da cozinha com aquelas fotos de comidas gostosas e me ensinado a “fazer de conta” quando as coisas não vão tão bem,

- por ter ido à faculdade depois de ter estado tanto tempo longe da escola e ter se formado uma advogada, com oito filhos paridos – essa lição é uma de minhas favoritas – sua força, persistência e valentia;

- por ter tido coragem de enfrentar uma separação e mais ainda pela coragem de enfrentar a reconciliação;

- por ser louca de pedra (minha maior inspiração);

- por ter me possibilitado ver que sou um ser provido de dons – exatamente como você – não há limites para os amores, não há limites para os dons, para as habilidades, para os sonhos...

- por me fazer perceber que amar é poder pensar em “virar os sapatos”, mas jamais mantê-los virados;

- por me permitir seguir meu rumo – meus rumos – sem jamais me impor limites relativos a minha capacidade de rumar...;

- por ser louca de pedra (já disse isso, mas vale repetir) – essa loucura é inspiração de vida, é puxão de orelha em todos aqueles que pensam que a vida não vale a pena;

- por ser linda – sempre tive tanto orgulho da “minha mãe”;

- por cuidar do meu pai, como cuidou dos meus irmãos amados;

- por manter nossa família mais unida do que qualquer outra família que eu conheço;

- por me oferecer o sabor do amor à culinária e às artes manuais;

- por estar aí – na frente deste computador – à frente das mulheres de sua idade – outra grande inspiração;

- por ser, enfim, a minha mãe – quando talvez houvesse tantas alternativas.

Acredito em nascimentos acordados em outra esfera, acredito em pactos de almas – e por isso, quero que saiba que seja lá qual for o motivo que nos fez acordar em sermos mãe e filha – valeu a pena. Vale a pena. Se meu espírito tinha de aprender alguma coisa de nosso convívio, acho que posso passar de ano, se a razão de nosso viver juntas era me dar suporte para eu poder enfrentar batalhas – obrigada – sou algo muito próximo de uma vencedora.

Se, por outro lado, a razão de nosso (re)encontro fosse saudar dívidas, espero de coração, que me tenha perdoado qualquer dívida que eu pudesse ter tido com você, porque eu, mãe, não tenho nada a te cobrar – só a agradecer.

Te amo. Feliz aniversário. Seja sempre você e esteja por perto por mais muitos anos – você é tão importante para mim quanto é para todos que te conhecem, e pra Vida (que deve ser sentir grata por ter você sempre tão alegre e tão doida de pedra, como é).

quarta-feira, março 30, 2011

Sou especial!

Acabo de me convencer – definitivamente: sou uma pessoa muito especial.
Nasci mulher no século XX, entrei mulher madura no século XXI, atravessei namoros malfadados, casamentos, partos, divórcios, viuvez.
Sinto inveja, ciúme, inseguranças, medos... Não tenho medo das ameaças do “fogo do inferno” proclamadas por religiões – não temo Deus – meu medo é talvez de mim – do tão especial que sou.
Meu Deus é bom – aliás, nem bom ele é. Meu Deus é tão superior, que dizê-lo bom, isso sim, é heresia. Meu Deus criou tudo o que houve, o que há e o que será – tudo parece estar pronto em seus planos.
Mas eu sou especial – sou especial porque fui criada assim, plena de consciência de meu eu – ainda que perdida em meus desencontros com partes de mim.
Sinto a vida como sendo plenamente minha. De meu barco a capitã sou eu – ainda que outro seja quem os ventos e as marés controle.
Sou muito especial – por minha intectualidade e minha estupidez.
Sou especial na insignificância de minha existência neste universo maravilhoso em que um pó de mim se faz carne.
Fiz filhos que me fizeram (ou farão) netos, fiz artes, ainda que medíocres, fiz amigos – dos melhores –, sou vizinha, amiga, filha, mãe, irmã, avó... sou eu quem se senta ao seu lado nos ônibus, nos trens, na sala de aula, no banco de espera do dentista.
Sou muito especial.
Já dormi com a traição e sanei aquele que me apunhalou, já fiz de mim serva e senhora, conheci a noite das esperanças e o amanhecer do amor.
Sou mesmo muito especial.
De minha vida, quando um dia me for, levarei tanta saudade que talvez, só, não possa carregar.
Amei homens e amei flores – de mulheres fiz espelhos, de crianças arco-iris, das dores fiz escadas e das alegrias longas estradas.
De mim saíram dois – mas não foram só os dois – de mim saíram mais – saíram risos e sorrisos, lágrimas e tantos sonhos...
Por vezes sinto que são deles – dos sonhos – que vivo.
Sonhos bons e sonhos maus – sonhos meus todos eles.
Que não tente sonhar por mim outro que não seja tão especial.
Eu sou muito especial.
Sei tantas coisas neste mundo; sei coser, cozinhar, escrever, falar, “amigar”, amar, desejar; sei dizer sim e dizer não, indicar direções que desconheço – e acertar!
Sei errar.
Sei pecar.
Sei ser eu mesma, e me perder.
Como sou especial...
Mas, não veja nisso arrogância – não, há aqui um olhar bastante especial sobre alguém que se sabe frágil e forte, audaciosa e temerosa (não da morte, não da dor, nem vida ou do trabalho) – temerosa não de um Deus covarde e vingativo, mas de sua própria pequenez, tão grande... porque mesmo sendo tão especial – pouco capaz sou de dizer a mim a mesma “Te amo”.

Te amo muito!


(Maria Lígia Conti – em noite de alguma lua – acho que tem lua... 29/03/2011 :-)

quarta-feira, setembro 15, 2010

Desencontros do Eu na busca interior, e possibilidades de reencontros na observação do outro



Maria Lígia Conti

Minha identidade é constituída a partir do que extraio de meus curadores ao longo de minha vida, num processo de alienação. Depois, devo me separar deles para constituir o meu Eu. (Ricardo Goldenberg)


A busca do autoconhecimento e a fragmentação do ser para a constituição de uma presumível unidade têm sido, aparentemente, dois objetivos bastante claros para muitos de nós. Essa busca desenfreada do autoconhecimento e da constituição do ser uno, que fica, tantas vezes, limitada a informações de bases empíricas, publicadas em um enorme volume de livros que se espalham por intermináveis prateleiras nas livrarias, e “lições de gibis” postas em revistas femininas e de atualidades, acaba por nos levar de fato, pensando com Ricardo Goldenberg, a uma grande confusão na identificação do Eu (Id) e do eu racional.
De acordo com a análise feita por Ricardo em suas duas palestras, Utopia na personalidade crise e superação da neurose da felicidade perfeita e Utopia do conhecimento , o autoconhecimento é ilusório, uma vez que somos o que nosso eu inconsciente determina, e dele nada sabemos. Refletindo, ainda com Ricardo, tenho o seguinte panorama: o indivíduo, sem o outro, se desconhece, ou seja: eu não sou sem o outro, que me diz o que sou através do que falo a ele, do que deixo de falar e de como ele me ouve e, ainda, do que falo de um terceiro. Bastante interessante e de difícil exercício, essa descoberta do Eu, que não levará ao autoconhecimento, porque, na verdade, nada sei de mim. Porém, através da uma análise constante, que exige uma observação permanente sobre o que dizemos e o que não dizemos para o outro e sobre o outro, poderemos chegar a identificar alguns de nosso modos de agir e pensar – e, então, poderemos dizer que sabemos um pouco de nós mesmos, ainda que esse saber não nos desvincule do outro, uma vez que estamos, nós e ele, em constante movimento.
Quando falo de mim, eu não sei o que estou dizendo, mas quando falo de você, eu, com certeza, estou falando de mim o essencial. (Goldemberg 3)
Quanto à felicidade, outra quimera, segundo Ricardo, descobrimos que foi, na Grécia antiga, um dos componentes do pensar a sociedade e administrar a polis. Esse pensar a felicidade a partir do conceito do “bom uso dos prazeres”, em princípio, daria a ideia de um pensar a “sociedade como um todo” (expressão muito moderna e de uso indiscriminado, conforme se pode observar em muitos textos contemporâneos), porém, como nos esclarece nosso palestrante, esse pensar era, na verdade, um tentar pensar a individualidade – o que acredito tivesse se aproximado do possível num mundo de milhares de habitantes. Nos nossos dias, contudo, se tivermos a intenção de nos presentearmos ou presentear alguém com a felicidade (e sua co-relata liberdade de bom uso dos prazeres), com certeza encontraremos obstáculos muito além dos de possível solução oferecida por um governo ou qualquer outra entidade. Mas, talvez essa seja mais uma das barreiras que o cristianismo cuidou de construir frente aos meus olhos (e que ainda não consegui desconstruir – e assumo a responsabilidade de minha escolha ao ouvir o que me foi dito)...
Bem, extensas, as duas palestras nos trazem coisas novas e coisas já sabidas que nos fazem bem relembrar – e uma vez mais ouvir. De todos os desvios, devaneios, ilustrações e dados oferecidos nas falas de Ricardo, vou me apropriar, por um momento, de uma, especificamente, que me leva a considerar a aula (e por sua vez, a sala de aula, o ensinoaprendizagem, os livros didáticos, a escola e o cotidiano escolar): “Para pensar, preciso da linguagem e a linguagem me vem de fora”.
Ora, esse desenvolvimento do raciocínio me é de extrema importância e relevância na concepção de um livro didático e no fazer da aula. Se tenho um indivíduo em sala de aula, posto (por si ou um terceiro) a me ouvir (eu professor que supostamente sei daquilo que falo), e me limito no uso de uma linguagem que, naquele momento, é nova para aquele indivíduo, como posso esperar que ele pense, senão como reprodução daquilo que digo? Ou seja, se “o material do pensar” que lhe ofereço é x, caso ele não tenha acesso a outros componentes y, z etc, esse aluno/essa aluna tenderão a reproduzir minha fala, meu pensar e, deduzo, não haverá um escape desse círculo que se torna vicioso. Isso me leva a considerar a valia da abordagem interdisciplinar no ensino escolar – considerar o outro, levar em conta o cotidiano escolar, o meio em que vive o aluno/a aluna, a origem social dos indivíduos, sua bagagem cultural, seus modos de desfrutar dos prazeres. Essa abordagem geraria indivíduos mais pensantes, uma vez que seus “eus” estariam sendo constituídos a partir de um reflexo real de seus “Eus”, e não de um regurgitar vazio de sentido derramado sobre um grupo, como se este fosse homogêneo – uno – uma massa.
Penso então, na questão do livro didático – “feito para todos”. Quem exatamente seriam todos? Todos os brancos, e os índios e os negros, os fisicamente hábeis, e os deficientes físicos, os meninos, as meninas, e os ateus, e judeus, cristãos, mulçumanos, hindus, heterossexuais, homossexuais, indecisos, ricos, pobres, vencedores e vencidos?
Não. O livro didático é feito para uma massa supostamente não composta por indivíduos pensantes. Uma massa que será amalgamada num único e limitado pensar, num aceitar o ponto de vista daquele que “conta” a história, seleciona a “melhor” literatura, indica o rumo das ciências, traça o roteiro do futuro, a partir do olhar do dominador sobre o dominado.
E eu, o professor? O que me compete?
A mim me compete perceber esses truques, instruir-me no maior número de linguagens que me forem possíveis digerir, fazer minhas escolhas e demonstrar aos alunos e alunas que fiz escolhas a partir de um saber que é provisório, pois vivo e me movimento, e oferecer-lhes alternativas, propiciando-lhe momentos de diálogos que acabarão, como nos mostra Ricardo Goldenberg, por mostrar a mim mesma “o que eu não sabia que não sabia” – e esse movimento enriquecedor poderá, enfim, trazer algum entendimento de quem somos – senão no conceito psicanalítico de ser, pelo menos no conceito político de ser cidadão/cidadã livre para pensar-nos e definirmos com consciência o que julgamos ser melhor uso dos prazeres.

O que ganha e o que perde quem busca conhecer a si mesmo? Seria o oráculo de Delfos, afinal, uma maldição?
‘Quem sou eu’?


Para Goldenberg, a psicanálise deve apostar na nossa capacidade de responder a esta pergunta e de criar sentidos para a nossa vida. (Texto introdutório do vídeo: Utopia do autoconhecimento3)
Para mim, o oráculo não é uma maldição, mas um impulso para que olhemos o outro e nos reconheçamos nele que se reconhecerá em nós, gerando movimentos de entendimento entre os diferentes seres (em suas n versões). Assim com o Goldenberg sugere que a psicanálise deve apostar nessa nossa capacidade, acredito que o professor deve investir nessa empreitada, cunhando possibilidades de criação de sentidos para as vidas.



04/06/2010
Publicado(com adaptações à midia) no Jornal Cruzeiro do Sul - Sorocaba - 13/09/2010

domingo, maio 16, 2010

Canção da Vida (1994)


Desde o parto
os filhos partem
e, ao partir,
nos partem.

Partem em partes
o coração que,
partido,
assiste à partida.

Desde o parto
partes de nós
partem
para viver à parte

E partidos permanecemos
a partilhar com eles
a alegria de partir
e encontrar suas partes.

O Homem e o Mar



(um ensaio sob inspiração de João Cabral de Mello Neto - 1995)

O que o homem aprende do mar:
o derramar e alastrar do líquido espumoso
que preenche os epaços e enche de prazer
[seus domínios momentâneos;
o mistério da expressão de seus versos
[não cantados;
a paixão agressiva e possesiva que encanta
e domina ao fazer-se atraente e incontrolavelmente desejado.

O que o homem não aprende do mar:
o sorrir e alegrar-se por pequenos momentos;
o tocar diferente a uns e a outros;
o mostrar-se confiável num simples movimento;
o abraçar e envolver corpos humanos
provocando-lhes calor intenso.

O que o mar não ensina ao homem:
o surprender a cada dia,
o ser suave a despeito de sua violência natural,
o dominar sem fazer com que o outro se sinta dominado.

sábado, maio 15, 2010

Busco um homem




Sabe, eu estive pensando... não é interessante viver sem homem... não desejo ir aos quatro cantos do mundo para alardear essa minha conclusão, mas sei que posso confiar em você - minha amiga - mulher, que sabe de que eu estou falando.

Hoje acordei cedo e fui ao supermercado para fazer compras. Paguei com o meu dinheiro (dinheiro do meu trabalho, quero dizer) - comprei tudo o que precisava para a casa. Voltei, comi um sanduíche rapidinho e fui fazer umas costuras atrasadas - deu errado, não acertei por cinco vezes e acabei deixando o que seria uma bela almofada, como paninho na lata de material reciclado - a minha filha diz que quem o achar vai pensar que é uma bandana tribal e vai colocar na cabeça para usar em alguma festa ao som de Calipxo (nem sei como se escreve isso).

Depois, comecei a arrumar a cozinha e preparar os legumes para o jantar - meu filho vem jantar comigo hoje. Então nos lembramos de que é necessário limpar a água da piscina, digo limpar a água e não limpar a piscina, porque esta está perdida de suja e não tem mais dinheiro que chega - não consigo deixá-la limpa – dessa forma, nos satisfazemos em manter a denge longe...

Por uma hora e meia estivemos lá... aspirando, limpando o filtro, aspirando... e a água continua verde musgo (musgo em temporada de chuva abundante...). Aproveitei para dar uma varridinha na frente da casa - as folhas estão tomando conta de tudo, como no castelo da bela adormecida...

Voltei à cozinha para os legumes e vi que precisava dar uma varrida na casa também - vem visita, é filho, mas, vem nora junto, sabe como é...

Vou varrer a casa, vou limpar as verduras e legumes, picar a carne, fazer o jantar, arrumar a cozinha, dar um jeito nos tecidos para amanhã começar cedo.

Amanhã, aliás, teria de pagar umas contas vencidas, mas só começo a receber a partir de amanhã. Acho que logo depois do feriado já posso começar a fazer os pagamentos.

Cortei os cabelos nesta semana, mas olhando para minhas unhas, penso: como era bom quando eu ia à cabelereira todas as semanas para fazer as mãos e os pés, sobrancelhas, depilação, buço e essas coisas...
Tenho um ou dois pelinhos inconvenientes no colo e nem me animo a tirá-los - sempre que penso que preciso buscá-los e eliminá-los logo me vem algo mais importante, ou pelo menos mais urgente, a fazer e penso: afinal ninguém vai ver mesmo...
Desisto.

Hoje tomei a decisão de minha vida - QUERO UM HOMEM.

Então, decidi escrever para minhas amigas e rasgar o verbo, vou fazer a encomenda e se alguém vir meu "pacote" em algum lugar, me avise, eu vou correndo buscar.
Ele tem de ter dinheiro – porque não posso me dar ao luxo de sustentar mais um.
Tem de ser limpo (de unhas limpas e bom hálito);
Já não faço muita questão que leia muito ou que fale sobre literatura, basta que converse um pouco - pode até ser sobre boiada e bosta de vaca - já nem ligo mais.
Mas tem de ter dinheiro – porque gostaria de ser convidada de vez em quando para um programa e não ter de pagar a conta.
Será interessante se gostar de viajar ou pelo mesmo não se importar que eu o faça.
Eu gostarei muito se ele se interessar por meus assuntos, mas se não interessar, que aceite a visita constante de minhas amigas para chás, cervejas, e churrasquinhos em casa - então converso com elas (vocês) e fica tudo bem...

Eu vou amar se ele tiver um lindo sorriso, mas se não der, pelo menos que tenha todos os dentes e que não sejam tortos nem que tenham manchas amarelas de cigarro - será ótimo que não fume, mas se for pedir demais, então tá bom... que seja cigarro com filtro e não de palha...

Pode usar chapéu na cabeça e me levar pra rodeios, não me importo - vou até cantar junto - aprendo fácil!

Em troca, eu dou amor, carinho, fidelidade (que trair, eu não traio), dou dois filhos prontos e dois netos - já não posso ter outros filhos, mas e daí, ele se beneficia da vantagem de não precisar ter a mulher com barriga, enjoada e sem disposição para o sexo - aliás, ofereço sexo também...

Cuido da casa, organizo as festas, recebo os convidados, decoro o lar e cuido para que os criados façam tudo direitinho dentro do casarão - em Minas, São Paulo, Texas ou Goiás - tanto faz... Dou carinho, faço cafuné, sou divertida, inteligente e, é importante lembrar – “sou limpinha"... Além disso, não gosto de fofocas, não brigo com sogra e nem me incomodo se tiver sogra na parada - eu até deixo ela tomar conta da limpeza da casa e do almoço, se ela quiser... nem ligo...
Mas tem de ter dinheiro – porque meu sonho é trabalhar sem ter de pensar nas contas...
Não precisa ser milionário, pode só ser fazendeiro de uma fazenda só, não ligo. Algumas cabeças de gado, “uns porquinho", “umas galinha”, dois ou três cavalos pra gente cavalgar pelas "terra". Não faço questão de que ele leia Veja, mas seria tão bom se ele lesse um pouquinho... Se ele não gosta de ir para Nova York ou Paris, ou Los Angeles, não tem importância, eu digo para ele que pode ficar e eu vou - mas ia gostar tanto se ele fosse... É ruim ter de comprar e carregar tudo sozinha... Além disso, é tão bom ter com quem conversar durante as viagens; ter companhia para ir a cinema, teatros, barzinho, cafés, museus, praças; tirar fotografias, fazer bonecos de neve, rolar nas camas de hotéis...

Cansei, meninas, juro que cansei!

Se encontrarem um homem assim ou se souberem de alguma feira agrária - dessas das boas - por aí, me avisem, vou me embelezar com um belo chapéu de cowboy, uma bota maneira e um batom de quebrar coração... O resto é comigo e a sorte -
Obrigada por entenderem e por colaborarem - vou lavar as verduras e varrer a casa...

Um grande beijo da amiga desolada e esperançosa... (se é que essas duas coisas podem coexistir)

Quando o sol não nasce por si


Quando o sol não nasce por si


Não são muitas as pessoas que admiram os mistérios que existem por trás das velhas moradas inglesas, hoje disponíveis aos locatários menos avisados. Elas são, na maioria das vezes, sobrados cheios de pequenos cômodos interligados por minúsculos corredores sem qualquer iluminação ou aquecimento solar.
Há quem duvide, mas as paredes dessas habitações centenárias relatam através de suas vibrações tudo o que têm visto e ouvido. Se um dia fores à Inglaterra e tiveres de hospedar-te em alguma dessas antigas “caixas de Pandora” – Fica atento!
Durante o inverno, anos atrás, enquanto dividia meu tempo entre o desconforto de um casamento conflituoso e a urgência de completar um romance vitoriano que escrevia, mudei-me para um pequeno e mal mobiliado apartamento de propriedade de um casal de armênios no distrito de Isle of Dogs, em Londres. Da janela de meu apartamento, próximo ao rio Tâmisa, podia-se ver, tanto quanto alcançasse a vista, dúzias de casas de aparência idêntica. Esta visão provocava-me, por razões que desconhecia na época, uma estranha combinação de sentimentos; eu sentia agonia e prazer.
Certa feita, numa manhã gelada, impossibilitada de sair, fiquei em casa a fim de recuperar-me de uma gripe que parecia estar querendo fazer parte de mim. No início da manhã, arrumei as camas, tomei um chá com biscoitos e, como não conseguisse ler ou escrever, aninhei-me numa delicada cadeira de balanço, próxima ao fogo e tentei pensar em nada. Aos poucos, fui-me encolhendo - não me sentia bem. Pensei que pudesse ser o frio simplesmente; talvez fosse o efeito dos remédios que tomara ou até a febre que aumentava rapidamente. De qualquer forma, havia alguma coisa estranha ocorrendo. Era como se eu não estivesse mais lá, como se algo estivesse me transportando a uma realidade que não correspondia àquela que eu conhecia...
De repente, vi-me diante de uma sólida cômoda de madeira escura, bem torneada, com enormes puxadores de ferro pesado e sem brilho. Estava ajoelhada sobre um pequeno tapete de cores opacas e procurava esconder, com muito cuidado, alguns papéis no fundo da última gaveta. Sentia-me acuada; sabia que ele poderia chegar a qualquer momento.
Com movimentos rápidos, porém cautelosos, escondi as folhas enroladas e atadas por uma fitinha de linho branco. Depois, sentei-me, aliviada, na delicada cadeira de balanço que herdara de meu pai. Ia já cochilando quando ouvi os passos malditos daquele homem horrível que tanto me desgraçava a vida. Tive medo, como de costume, mas levantei-me rapidamente e respondi aos seus urros de fera faminta. Desci as escadas correndo e dirigi-me à cozinha onde o fogo já aquecia, em uma grande panela de ferro, o alimento do animal.
Quase sem controlar meu tremor, disse-lhe que estivera atarefada com o bordado nos lençóis de Lady Hearthsworth. Contudo, ele não me ouvia, ele nunca me ouvia. Rapidamente servi-lhe o cozido quente, o conhaque barato e o pão que fizera no dia anterior. Enquanto engolia indistintamente a largos bocados tudo o que estava ao seu alcance, resmungava como se quisesse entreter a si próprio. Discursava sobre como fora seu dia no porto e todas aquelas coisas que aconteciam diariamente: roubos, brigas, discussões e ameaças de morte. Ao terminar o jantar, ele levantou-se, deu um grande e horroroso arroto de satisfação quase plena, tomou um último gole do conhaque e chamou-me para o quarto...
Os dias e as noites seguiam iguais. Minha única alegria era poder sentar-me na velha cadeira de balanço ou deitar-me sobre a cama e, à luz do azeite, escrever minhas histórias. Eram histórias de amor, nas quais donzelas solitárias esperavam ser salvas por heróis de barbas aparadas, mãos limpas e hálito agradável. Desde que meu pai morrera há alguns anos, morreram também minhas chances de um futuro como aquele de meus romances. Deixada só e com poucas reservas, vi-me obrigada a entregar-me àquele portuário a fim de evitar um destino talvez pior na zona do porto. Todavia, restavam-me os sonhos. Eu os escrevia e os vivia secretamente em minha imaginação ainda adolescente. Por duas vezes meu esposo me surpreendera escrevendo e, num comportamento bestial, queimara meus preciosos papéis em meio às brasas do fogão. Eu, desde então, procurava ser cautelosa, escrevia à tardinha antes de ele chegar, enquanto seu jantar era aquecido. A luz era pálida e meus olhos freqüentemente fraquejavam, mas sentia-me tão feliz em poder extravasar todo o conteúdo íntimo de minha alma que às vezes fugia-me o controle do tempo.
Foi num desses dias que ele chegou a casa sem que eu o percebesse. Subiu as escadas e deu-se comigo na cama, de bruços sobre um bloco de folhas de papel pardo, com uma pena encharcada de lágrimas negras à mão, a desfiar um longo rosário de paixões proibidas.
De espanto, saltei da cama derramando a tinta por todo o lençol de puro linho branco, agarrei-me aos papéis que continham o meu eu e tentei balbuciar algo – qualquer coisa que pudesse amansar aquele olhar medonho que me reduzia a um nada absoluto. Ele avançou sobre mim, esbofeteava-me como a um de seus comparsas portuários e dizia coisas que eu jamais pensara ouvir. Então ele tomou para si meus escritos e dirigiu-se à cozinha amaldiçoando tudo e todos a cada passo que dava. Contava de seus desencantos, e dos sacrifícios que tinha de fazer ganhar o seu dinheiro. Amaldiçoou nossa vida e nossa casa. Enquanto falava, já ao pé do fogão, lançava às brasas, uma vez mais, os meus sonhos postos à tinta. As chamas devoravam-nas e as transformavam em uma fumaça azulada – pálida e suave fumaça azulada... Nem ao menos tentei enfrentá-lo, não poderia. Não naquele momento.
Terminada sua empreita, ele tornou a esbofetear-me e, enchendo seu copo de conhaque, ordenou-me que lhe servisse o jantar. Fios de lágrimas e sangue corriam por meu rosto, que já fora jovial e alegre, e eu tentava contê-los com o pano que pendia de minha cintura por sobre o velho e gasto vestido bordado à mão. Ao terminar o jantar ele atirou longe a garrafa vazia, ordenou-me que apanhasse outra na despensa e que subisse ao quarto imediatamente. Iria vingar-se definitivamente. Em dias como este, em que se zangava e bebia por demais, ele me feria com o prazer característico das feras de sua estirpe.
Mas neste dia, não era medo o que eu sentia. Subi as escadas até o quarto, arranquei os lençóis da cama enquanto a besta despia-se e substituí-os por outros tão brancos quanto a palidez que tomara conta de minha pele e deitei-me quieta. Permiti-lhe então, que desonrasse, pela última vez, minha existência; o satisfiz em sua mais brutal índole animal.
Durante a noite, enquanto ele dormia pesadamente, com muita cautela peguei a minha cadeira de balanço e, arrastando meu corpo doído, levei-a para o andar de baixo, junto à porta de saída. Sem o menor ruído, retornei ao quarto, fechei as janelas com a tranca e tirei da última gaveta da cômoda meus antigos escritos, algumas folhas pardas, ainda mudas, minha pena, o que sobrara de minha tinta. Ao sair do quarto, derramei cautelosamente o azeite da lamparina ao redor da cama, estendi então um risco do mesmo azeite até a porta, tranquei-a atrás de mim, ateei fogo à fina linha que escorria próxima aos meus pés e saí, como quem sai de uma reunião de amigos – em paz.
Do lado de fora da casa, junto aos meus restritos pertences, sentada, imóvel, em minha cadeira de balanço, percebia a chegada de um grande número de pessoas. Todos traziam vasilhames com águas e ferramentas para combater o incêndio que se alastrava pela casa. “Há alguém lá dentro?” me perguntavam. “Ela está ferida”, ouvi alguém dizer, “Deve ter caído ao fugir”, uma outra pessoa concluiu... Eu os ouvia, mas não podia responder-lhes. Por fim deixaram-me lá, só, quieta, enquanto lutavam heroicamente contra o fogo que ardia com uma fúria impressionante. As paredes de pedra resistiam às chamas, mas o que havia entre elas era consumido pelo fogo que transformava tudo em fumaça – uma fumaça negra e mal cheirosa.
Conforme o fogo ia sendo finalmente controlado, eu podia vislumbrar meus dias futuros - Os vizinhos viriam ajudar-me a reconstruir o que fora destruído. Alguns o fariam por piedade, outros em troca de pequenos favores. Eu, provavelmente, passaria a receber visitas freqüentes de portuários e já não receberia encomendas de bordados. Contudo, nada mais me importava. Com o tempo, as casas iriam multiplicar-se naquela rua, as pessoas tornar-se-iam cada vez mais indiferentes umas às outras. Ninguém mais se incomodaria com os meus escritos, somente as paredes daquela casa se lembrariam do ocorrido – mas quem dá atenção às histórias que as paredes contam?

(

My wishes


May those dreams you have at night
all come true in the morning light.
May your future be sweet and bright
and all your decisions be right.

May the things you fight for
bring you happiness, and nothing more.

May your inner light forever shine.
And now that you're thirty-nine
May your lips get close to mine
Wilst we share a glass of wine.
(to Chris, 1996)