quarta-feira, setembro 15, 2010

Desencontros do Eu na busca interior, e possibilidades de reencontros na observação do outro



Maria Lígia Conti

Minha identidade é constituída a partir do que extraio de meus curadores ao longo de minha vida, num processo de alienação. Depois, devo me separar deles para constituir o meu Eu. (Ricardo Goldenberg)


A busca do autoconhecimento e a fragmentação do ser para a constituição de uma presumível unidade têm sido, aparentemente, dois objetivos bastante claros para muitos de nós. Essa busca desenfreada do autoconhecimento e da constituição do ser uno, que fica, tantas vezes, limitada a informações de bases empíricas, publicadas em um enorme volume de livros que se espalham por intermináveis prateleiras nas livrarias, e “lições de gibis” postas em revistas femininas e de atualidades, acaba por nos levar de fato, pensando com Ricardo Goldenberg, a uma grande confusão na identificação do Eu (Id) e do eu racional.
De acordo com a análise feita por Ricardo em suas duas palestras, Utopia na personalidade crise e superação da neurose da felicidade perfeita e Utopia do conhecimento , o autoconhecimento é ilusório, uma vez que somos o que nosso eu inconsciente determina, e dele nada sabemos. Refletindo, ainda com Ricardo, tenho o seguinte panorama: o indivíduo, sem o outro, se desconhece, ou seja: eu não sou sem o outro, que me diz o que sou através do que falo a ele, do que deixo de falar e de como ele me ouve e, ainda, do que falo de um terceiro. Bastante interessante e de difícil exercício, essa descoberta do Eu, que não levará ao autoconhecimento, porque, na verdade, nada sei de mim. Porém, através da uma análise constante, que exige uma observação permanente sobre o que dizemos e o que não dizemos para o outro e sobre o outro, poderemos chegar a identificar alguns de nosso modos de agir e pensar – e, então, poderemos dizer que sabemos um pouco de nós mesmos, ainda que esse saber não nos desvincule do outro, uma vez que estamos, nós e ele, em constante movimento.
Quando falo de mim, eu não sei o que estou dizendo, mas quando falo de você, eu, com certeza, estou falando de mim o essencial. (Goldemberg 3)
Quanto à felicidade, outra quimera, segundo Ricardo, descobrimos que foi, na Grécia antiga, um dos componentes do pensar a sociedade e administrar a polis. Esse pensar a felicidade a partir do conceito do “bom uso dos prazeres”, em princípio, daria a ideia de um pensar a “sociedade como um todo” (expressão muito moderna e de uso indiscriminado, conforme se pode observar em muitos textos contemporâneos), porém, como nos esclarece nosso palestrante, esse pensar era, na verdade, um tentar pensar a individualidade – o que acredito tivesse se aproximado do possível num mundo de milhares de habitantes. Nos nossos dias, contudo, se tivermos a intenção de nos presentearmos ou presentear alguém com a felicidade (e sua co-relata liberdade de bom uso dos prazeres), com certeza encontraremos obstáculos muito além dos de possível solução oferecida por um governo ou qualquer outra entidade. Mas, talvez essa seja mais uma das barreiras que o cristianismo cuidou de construir frente aos meus olhos (e que ainda não consegui desconstruir – e assumo a responsabilidade de minha escolha ao ouvir o que me foi dito)...
Bem, extensas, as duas palestras nos trazem coisas novas e coisas já sabidas que nos fazem bem relembrar – e uma vez mais ouvir. De todos os desvios, devaneios, ilustrações e dados oferecidos nas falas de Ricardo, vou me apropriar, por um momento, de uma, especificamente, que me leva a considerar a aula (e por sua vez, a sala de aula, o ensinoaprendizagem, os livros didáticos, a escola e o cotidiano escolar): “Para pensar, preciso da linguagem e a linguagem me vem de fora”.
Ora, esse desenvolvimento do raciocínio me é de extrema importância e relevância na concepção de um livro didático e no fazer da aula. Se tenho um indivíduo em sala de aula, posto (por si ou um terceiro) a me ouvir (eu professor que supostamente sei daquilo que falo), e me limito no uso de uma linguagem que, naquele momento, é nova para aquele indivíduo, como posso esperar que ele pense, senão como reprodução daquilo que digo? Ou seja, se “o material do pensar” que lhe ofereço é x, caso ele não tenha acesso a outros componentes y, z etc, esse aluno/essa aluna tenderão a reproduzir minha fala, meu pensar e, deduzo, não haverá um escape desse círculo que se torna vicioso. Isso me leva a considerar a valia da abordagem interdisciplinar no ensino escolar – considerar o outro, levar em conta o cotidiano escolar, o meio em que vive o aluno/a aluna, a origem social dos indivíduos, sua bagagem cultural, seus modos de desfrutar dos prazeres. Essa abordagem geraria indivíduos mais pensantes, uma vez que seus “eus” estariam sendo constituídos a partir de um reflexo real de seus “Eus”, e não de um regurgitar vazio de sentido derramado sobre um grupo, como se este fosse homogêneo – uno – uma massa.
Penso então, na questão do livro didático – “feito para todos”. Quem exatamente seriam todos? Todos os brancos, e os índios e os negros, os fisicamente hábeis, e os deficientes físicos, os meninos, as meninas, e os ateus, e judeus, cristãos, mulçumanos, hindus, heterossexuais, homossexuais, indecisos, ricos, pobres, vencedores e vencidos?
Não. O livro didático é feito para uma massa supostamente não composta por indivíduos pensantes. Uma massa que será amalgamada num único e limitado pensar, num aceitar o ponto de vista daquele que “conta” a história, seleciona a “melhor” literatura, indica o rumo das ciências, traça o roteiro do futuro, a partir do olhar do dominador sobre o dominado.
E eu, o professor? O que me compete?
A mim me compete perceber esses truques, instruir-me no maior número de linguagens que me forem possíveis digerir, fazer minhas escolhas e demonstrar aos alunos e alunas que fiz escolhas a partir de um saber que é provisório, pois vivo e me movimento, e oferecer-lhes alternativas, propiciando-lhe momentos de diálogos que acabarão, como nos mostra Ricardo Goldenberg, por mostrar a mim mesma “o que eu não sabia que não sabia” – e esse movimento enriquecedor poderá, enfim, trazer algum entendimento de quem somos – senão no conceito psicanalítico de ser, pelo menos no conceito político de ser cidadão/cidadã livre para pensar-nos e definirmos com consciência o que julgamos ser melhor uso dos prazeres.

O que ganha e o que perde quem busca conhecer a si mesmo? Seria o oráculo de Delfos, afinal, uma maldição?
‘Quem sou eu’?


Para Goldenberg, a psicanálise deve apostar na nossa capacidade de responder a esta pergunta e de criar sentidos para a nossa vida. (Texto introdutório do vídeo: Utopia do autoconhecimento3)
Para mim, o oráculo não é uma maldição, mas um impulso para que olhemos o outro e nos reconheçamos nele que se reconhecerá em nós, gerando movimentos de entendimento entre os diferentes seres (em suas n versões). Assim com o Goldenberg sugere que a psicanálise deve apostar nessa nossa capacidade, acredito que o professor deve investir nessa empreitada, cunhando possibilidades de criação de sentidos para as vidas.



04/06/2010
Publicado(com adaptações à midia) no Jornal Cruzeiro do Sul - Sorocaba - 13/09/2010

domingo, maio 16, 2010

Canção da Vida (1994)


Desde o parto
os filhos partem
e, ao partir,
nos partem.

Partem em partes
o coração que,
partido,
assiste à partida.

Desde o parto
partes de nós
partem
para viver à parte

E partidos permanecemos
a partilhar com eles
a alegria de partir
e encontrar suas partes.

O Homem e o Mar



(um ensaio sob inspiração de João Cabral de Mello Neto - 1995)

O que o homem aprende do mar:
o derramar e alastrar do líquido espumoso
que preenche os epaços e enche de prazer
[seus domínios momentâneos;
o mistério da expressão de seus versos
[não cantados;
a paixão agressiva e possesiva que encanta
e domina ao fazer-se atraente e incontrolavelmente desejado.

O que o homem não aprende do mar:
o sorrir e alegrar-se por pequenos momentos;
o tocar diferente a uns e a outros;
o mostrar-se confiável num simples movimento;
o abraçar e envolver corpos humanos
provocando-lhes calor intenso.

O que o mar não ensina ao homem:
o surprender a cada dia,
o ser suave a despeito de sua violência natural,
o dominar sem fazer com que o outro se sinta dominado.

sábado, maio 15, 2010

Busco um homem




Sabe, eu estive pensando... não é interessante viver sem homem... não desejo ir aos quatro cantos do mundo para alardear essa minha conclusão, mas sei que posso confiar em você - minha amiga - mulher, que sabe de que eu estou falando.

Hoje acordei cedo e fui ao supermercado para fazer compras. Paguei com o meu dinheiro (dinheiro do meu trabalho, quero dizer) - comprei tudo o que precisava para a casa. Voltei, comi um sanduíche rapidinho e fui fazer umas costuras atrasadas - deu errado, não acertei por cinco vezes e acabei deixando o que seria uma bela almofada, como paninho na lata de material reciclado - a minha filha diz que quem o achar vai pensar que é uma bandana tribal e vai colocar na cabeça para usar em alguma festa ao som de Calipxo (nem sei como se escreve isso).

Depois, comecei a arrumar a cozinha e preparar os legumes para o jantar - meu filho vem jantar comigo hoje. Então nos lembramos de que é necessário limpar a água da piscina, digo limpar a água e não limpar a piscina, porque esta está perdida de suja e não tem mais dinheiro que chega - não consigo deixá-la limpa – dessa forma, nos satisfazemos em manter a denge longe...

Por uma hora e meia estivemos lá... aspirando, limpando o filtro, aspirando... e a água continua verde musgo (musgo em temporada de chuva abundante...). Aproveitei para dar uma varridinha na frente da casa - as folhas estão tomando conta de tudo, como no castelo da bela adormecida...

Voltei à cozinha para os legumes e vi que precisava dar uma varrida na casa também - vem visita, é filho, mas, vem nora junto, sabe como é...

Vou varrer a casa, vou limpar as verduras e legumes, picar a carne, fazer o jantar, arrumar a cozinha, dar um jeito nos tecidos para amanhã começar cedo.

Amanhã, aliás, teria de pagar umas contas vencidas, mas só começo a receber a partir de amanhã. Acho que logo depois do feriado já posso começar a fazer os pagamentos.

Cortei os cabelos nesta semana, mas olhando para minhas unhas, penso: como era bom quando eu ia à cabelereira todas as semanas para fazer as mãos e os pés, sobrancelhas, depilação, buço e essas coisas...
Tenho um ou dois pelinhos inconvenientes no colo e nem me animo a tirá-los - sempre que penso que preciso buscá-los e eliminá-los logo me vem algo mais importante, ou pelo menos mais urgente, a fazer e penso: afinal ninguém vai ver mesmo...
Desisto.

Hoje tomei a decisão de minha vida - QUERO UM HOMEM.

Então, decidi escrever para minhas amigas e rasgar o verbo, vou fazer a encomenda e se alguém vir meu "pacote" em algum lugar, me avise, eu vou correndo buscar.
Ele tem de ter dinheiro – porque não posso me dar ao luxo de sustentar mais um.
Tem de ser limpo (de unhas limpas e bom hálito);
Já não faço muita questão que leia muito ou que fale sobre literatura, basta que converse um pouco - pode até ser sobre boiada e bosta de vaca - já nem ligo mais.
Mas tem de ter dinheiro – porque gostaria de ser convidada de vez em quando para um programa e não ter de pagar a conta.
Será interessante se gostar de viajar ou pelo mesmo não se importar que eu o faça.
Eu gostarei muito se ele se interessar por meus assuntos, mas se não interessar, que aceite a visita constante de minhas amigas para chás, cervejas, e churrasquinhos em casa - então converso com elas (vocês) e fica tudo bem...

Eu vou amar se ele tiver um lindo sorriso, mas se não der, pelo menos que tenha todos os dentes e que não sejam tortos nem que tenham manchas amarelas de cigarro - será ótimo que não fume, mas se for pedir demais, então tá bom... que seja cigarro com filtro e não de palha...

Pode usar chapéu na cabeça e me levar pra rodeios, não me importo - vou até cantar junto - aprendo fácil!

Em troca, eu dou amor, carinho, fidelidade (que trair, eu não traio), dou dois filhos prontos e dois netos - já não posso ter outros filhos, mas e daí, ele se beneficia da vantagem de não precisar ter a mulher com barriga, enjoada e sem disposição para o sexo - aliás, ofereço sexo também...

Cuido da casa, organizo as festas, recebo os convidados, decoro o lar e cuido para que os criados façam tudo direitinho dentro do casarão - em Minas, São Paulo, Texas ou Goiás - tanto faz... Dou carinho, faço cafuné, sou divertida, inteligente e, é importante lembrar – “sou limpinha"... Além disso, não gosto de fofocas, não brigo com sogra e nem me incomodo se tiver sogra na parada - eu até deixo ela tomar conta da limpeza da casa e do almoço, se ela quiser... nem ligo...
Mas tem de ter dinheiro – porque meu sonho é trabalhar sem ter de pensar nas contas...
Não precisa ser milionário, pode só ser fazendeiro de uma fazenda só, não ligo. Algumas cabeças de gado, “uns porquinho", “umas galinha”, dois ou três cavalos pra gente cavalgar pelas "terra". Não faço questão de que ele leia Veja, mas seria tão bom se ele lesse um pouquinho... Se ele não gosta de ir para Nova York ou Paris, ou Los Angeles, não tem importância, eu digo para ele que pode ficar e eu vou - mas ia gostar tanto se ele fosse... É ruim ter de comprar e carregar tudo sozinha... Além disso, é tão bom ter com quem conversar durante as viagens; ter companhia para ir a cinema, teatros, barzinho, cafés, museus, praças; tirar fotografias, fazer bonecos de neve, rolar nas camas de hotéis...

Cansei, meninas, juro que cansei!

Se encontrarem um homem assim ou se souberem de alguma feira agrária - dessas das boas - por aí, me avisem, vou me embelezar com um belo chapéu de cowboy, uma bota maneira e um batom de quebrar coração... O resto é comigo e a sorte -
Obrigada por entenderem e por colaborarem - vou lavar as verduras e varrer a casa...

Um grande beijo da amiga desolada e esperançosa... (se é que essas duas coisas podem coexistir)

Quando o sol não nasce por si


Quando o sol não nasce por si


Não são muitas as pessoas que admiram os mistérios que existem por trás das velhas moradas inglesas, hoje disponíveis aos locatários menos avisados. Elas são, na maioria das vezes, sobrados cheios de pequenos cômodos interligados por minúsculos corredores sem qualquer iluminação ou aquecimento solar.
Há quem duvide, mas as paredes dessas habitações centenárias relatam através de suas vibrações tudo o que têm visto e ouvido. Se um dia fores à Inglaterra e tiveres de hospedar-te em alguma dessas antigas “caixas de Pandora” – Fica atento!
Durante o inverno, anos atrás, enquanto dividia meu tempo entre o desconforto de um casamento conflituoso e a urgência de completar um romance vitoriano que escrevia, mudei-me para um pequeno e mal mobiliado apartamento de propriedade de um casal de armênios no distrito de Isle of Dogs, em Londres. Da janela de meu apartamento, próximo ao rio Tâmisa, podia-se ver, tanto quanto alcançasse a vista, dúzias de casas de aparência idêntica. Esta visão provocava-me, por razões que desconhecia na época, uma estranha combinação de sentimentos; eu sentia agonia e prazer.
Certa feita, numa manhã gelada, impossibilitada de sair, fiquei em casa a fim de recuperar-me de uma gripe que parecia estar querendo fazer parte de mim. No início da manhã, arrumei as camas, tomei um chá com biscoitos e, como não conseguisse ler ou escrever, aninhei-me numa delicada cadeira de balanço, próxima ao fogo e tentei pensar em nada. Aos poucos, fui-me encolhendo - não me sentia bem. Pensei que pudesse ser o frio simplesmente; talvez fosse o efeito dos remédios que tomara ou até a febre que aumentava rapidamente. De qualquer forma, havia alguma coisa estranha ocorrendo. Era como se eu não estivesse mais lá, como se algo estivesse me transportando a uma realidade que não correspondia àquela que eu conhecia...
De repente, vi-me diante de uma sólida cômoda de madeira escura, bem torneada, com enormes puxadores de ferro pesado e sem brilho. Estava ajoelhada sobre um pequeno tapete de cores opacas e procurava esconder, com muito cuidado, alguns papéis no fundo da última gaveta. Sentia-me acuada; sabia que ele poderia chegar a qualquer momento.
Com movimentos rápidos, porém cautelosos, escondi as folhas enroladas e atadas por uma fitinha de linho branco. Depois, sentei-me, aliviada, na delicada cadeira de balanço que herdara de meu pai. Ia já cochilando quando ouvi os passos malditos daquele homem horrível que tanto me desgraçava a vida. Tive medo, como de costume, mas levantei-me rapidamente e respondi aos seus urros de fera faminta. Desci as escadas correndo e dirigi-me à cozinha onde o fogo já aquecia, em uma grande panela de ferro, o alimento do animal.
Quase sem controlar meu tremor, disse-lhe que estivera atarefada com o bordado nos lençóis de Lady Hearthsworth. Contudo, ele não me ouvia, ele nunca me ouvia. Rapidamente servi-lhe o cozido quente, o conhaque barato e o pão que fizera no dia anterior. Enquanto engolia indistintamente a largos bocados tudo o que estava ao seu alcance, resmungava como se quisesse entreter a si próprio. Discursava sobre como fora seu dia no porto e todas aquelas coisas que aconteciam diariamente: roubos, brigas, discussões e ameaças de morte. Ao terminar o jantar, ele levantou-se, deu um grande e horroroso arroto de satisfação quase plena, tomou um último gole do conhaque e chamou-me para o quarto...
Os dias e as noites seguiam iguais. Minha única alegria era poder sentar-me na velha cadeira de balanço ou deitar-me sobre a cama e, à luz do azeite, escrever minhas histórias. Eram histórias de amor, nas quais donzelas solitárias esperavam ser salvas por heróis de barbas aparadas, mãos limpas e hálito agradável. Desde que meu pai morrera há alguns anos, morreram também minhas chances de um futuro como aquele de meus romances. Deixada só e com poucas reservas, vi-me obrigada a entregar-me àquele portuário a fim de evitar um destino talvez pior na zona do porto. Todavia, restavam-me os sonhos. Eu os escrevia e os vivia secretamente em minha imaginação ainda adolescente. Por duas vezes meu esposo me surpreendera escrevendo e, num comportamento bestial, queimara meus preciosos papéis em meio às brasas do fogão. Eu, desde então, procurava ser cautelosa, escrevia à tardinha antes de ele chegar, enquanto seu jantar era aquecido. A luz era pálida e meus olhos freqüentemente fraquejavam, mas sentia-me tão feliz em poder extravasar todo o conteúdo íntimo de minha alma que às vezes fugia-me o controle do tempo.
Foi num desses dias que ele chegou a casa sem que eu o percebesse. Subiu as escadas e deu-se comigo na cama, de bruços sobre um bloco de folhas de papel pardo, com uma pena encharcada de lágrimas negras à mão, a desfiar um longo rosário de paixões proibidas.
De espanto, saltei da cama derramando a tinta por todo o lençol de puro linho branco, agarrei-me aos papéis que continham o meu eu e tentei balbuciar algo – qualquer coisa que pudesse amansar aquele olhar medonho que me reduzia a um nada absoluto. Ele avançou sobre mim, esbofeteava-me como a um de seus comparsas portuários e dizia coisas que eu jamais pensara ouvir. Então ele tomou para si meus escritos e dirigiu-se à cozinha amaldiçoando tudo e todos a cada passo que dava. Contava de seus desencantos, e dos sacrifícios que tinha de fazer ganhar o seu dinheiro. Amaldiçoou nossa vida e nossa casa. Enquanto falava, já ao pé do fogão, lançava às brasas, uma vez mais, os meus sonhos postos à tinta. As chamas devoravam-nas e as transformavam em uma fumaça azulada – pálida e suave fumaça azulada... Nem ao menos tentei enfrentá-lo, não poderia. Não naquele momento.
Terminada sua empreita, ele tornou a esbofetear-me e, enchendo seu copo de conhaque, ordenou-me que lhe servisse o jantar. Fios de lágrimas e sangue corriam por meu rosto, que já fora jovial e alegre, e eu tentava contê-los com o pano que pendia de minha cintura por sobre o velho e gasto vestido bordado à mão. Ao terminar o jantar ele atirou longe a garrafa vazia, ordenou-me que apanhasse outra na despensa e que subisse ao quarto imediatamente. Iria vingar-se definitivamente. Em dias como este, em que se zangava e bebia por demais, ele me feria com o prazer característico das feras de sua estirpe.
Mas neste dia, não era medo o que eu sentia. Subi as escadas até o quarto, arranquei os lençóis da cama enquanto a besta despia-se e substituí-os por outros tão brancos quanto a palidez que tomara conta de minha pele e deitei-me quieta. Permiti-lhe então, que desonrasse, pela última vez, minha existência; o satisfiz em sua mais brutal índole animal.
Durante a noite, enquanto ele dormia pesadamente, com muita cautela peguei a minha cadeira de balanço e, arrastando meu corpo doído, levei-a para o andar de baixo, junto à porta de saída. Sem o menor ruído, retornei ao quarto, fechei as janelas com a tranca e tirei da última gaveta da cômoda meus antigos escritos, algumas folhas pardas, ainda mudas, minha pena, o que sobrara de minha tinta. Ao sair do quarto, derramei cautelosamente o azeite da lamparina ao redor da cama, estendi então um risco do mesmo azeite até a porta, tranquei-a atrás de mim, ateei fogo à fina linha que escorria próxima aos meus pés e saí, como quem sai de uma reunião de amigos – em paz.
Do lado de fora da casa, junto aos meus restritos pertences, sentada, imóvel, em minha cadeira de balanço, percebia a chegada de um grande número de pessoas. Todos traziam vasilhames com águas e ferramentas para combater o incêndio que se alastrava pela casa. “Há alguém lá dentro?” me perguntavam. “Ela está ferida”, ouvi alguém dizer, “Deve ter caído ao fugir”, uma outra pessoa concluiu... Eu os ouvia, mas não podia responder-lhes. Por fim deixaram-me lá, só, quieta, enquanto lutavam heroicamente contra o fogo que ardia com uma fúria impressionante. As paredes de pedra resistiam às chamas, mas o que havia entre elas era consumido pelo fogo que transformava tudo em fumaça – uma fumaça negra e mal cheirosa.
Conforme o fogo ia sendo finalmente controlado, eu podia vislumbrar meus dias futuros - Os vizinhos viriam ajudar-me a reconstruir o que fora destruído. Alguns o fariam por piedade, outros em troca de pequenos favores. Eu, provavelmente, passaria a receber visitas freqüentes de portuários e já não receberia encomendas de bordados. Contudo, nada mais me importava. Com o tempo, as casas iriam multiplicar-se naquela rua, as pessoas tornar-se-iam cada vez mais indiferentes umas às outras. Ninguém mais se incomodaria com os meus escritos, somente as paredes daquela casa se lembrariam do ocorrido – mas quem dá atenção às histórias que as paredes contam?

(

My wishes


May those dreams you have at night
all come true in the morning light.
May your future be sweet and bright
and all your decisions be right.

May the things you fight for
bring you happiness, and nothing more.

May your inner light forever shine.
And now that you're thirty-nine
May your lips get close to mine
Wilst we share a glass of wine.
(to Chris, 1996)

É assim que eu vejo a mãe




Cheia “dos enfeite"

A mãe é desse jeito: nunca foi à missa, não sei bem porque, mas é fervorosa fã de santos. É fã mesmo que eu quero falar, porque a mãe não é exatamente devota de santo. Ela é fã, do tipo que faz torcida em dia de festa e xinga quando a final resulta em derrota. Que eu sei, a mãe é pouco de ir ao cinema, ela gosta mesmo é filme em DVD. É bem moderna a mãe. Mas já teve seu tempo de ir ao cinema, com namorado que nem podia pôr o braço no ombro dela, senão levava um esculacho. Ela conta que um dia, na matinê, falou pra um moço que ele ia ganhar um terninho de marinheiro se ele se comportasse na sala de cinema. Eu até imagino o carão que o coitado passou.
Sofre de nada a danada, aliás, se sofre, ninguém fica sabendo. Lá tem suas canseiras agora que já criou tanto filho, mas nada que a faça deixar de trabalhar como se tivesse no começo da vida - quando a lida é necessidade gritante. Mas eu me lembro bem do dia em que ela ficou doida. Pouca gente fala disso, talvez porque nem ficaram sabendo da conversa inteira. Mas ela viu na casa de uns velhos, lá cidade de Salto de Pirapora, uma tal de uma cristaleira que tinha pertencido a famílias muito antigas, e depois de ver o móvel, a mãe endoidou. Danou a perguntar se a gente tinha visto uma tal de jaqueta verde, que ninguém nem sabia da existência e, aí, esqueceu de um montão de coisas e ficou mesmo parecendo doida. Eu, que tenho fé na cura dos doidos, levei lá na casa do pai, um homem adepto das pequenas bruxarias. E ele fez lá uns riscos no chão - trancado no quarto junto com ela, fez reza forte e, por fim, lá saiu ela - "curada", sem nem saber se o que eu contava era verdade. Mas que é, é!
Quando eu fiquei moça, me lembro de uma bronca enorme que ela me deu, "em público", porque eu esqueci de esconder a minha "fraldinha" lá no banheiro. Já se vão lá quase quarenta anos que isso aconteceu, mas lembro como se fosse hoje mesmo - a vergonha que eu passei. Mas adivinhar é que a gente não adivinha as coisas. Se ninguém ensina, leva um tempo pra aprender sozinha. Meu primeiro namorado, que eu trouxe em casa pra conhecer a família, era um moço mais velho do que eu, bonito e formado em engenharia. A mãe, na época, fazia Direito, nunca que ia ser advogada, mas queria provar que podia ser mais que uma "nega beiçuda", como o pai comparou ela um dia. Meu namorado adorava conversar com a mãe. Ela sempre soube de muitas coisas, e era bem divertida. Então, ele chegava em casa, me dava um beijinho e se punha na cozinha pra conversar com ela - até a hora de ir embora. Sempre foi divertida a mãe...
Quando eu completei onze anos, lá fui eu trabalhar no consultório do pai. Eram dois médicos, o pai e um pediatra. Eu trabalhava depois do almoço, quando saía da escola. Um dia, a mãe falou, assim como quem não quer nada, que ela queria um vaso de flor de azaléia que tinha visto na floricultura. Custava noventa cruzeiros - meu salário inteirinho de um mês, mas eu comprei. Um tempinho depois, ela deu o vaso pra Santa Clara, que era pro meu irmão Alex sarar de alguma doença que eu não me lembro qual era. A flor secou como se fosse arruda carregada de inveja. Ela disse que deu uma coisa que gostava muito porque o Alex era muito importante. Eu acho que entendi bem isso uns anos depois, mas na hora foi duro de verdade. De qualquer forma, eu sempre cuidei dos meninos como se fossem meus filhos, então, acho que valeu o pagamento.
Vive dizendo que quer ficar pra semente. Ela fala que a vida dela é tão boa, que se ela tiver de voltar, quer ser ela mesma, de novo. O palavrão da mãe é "bosta seca", mas se ela está mesmo muito brava, então ela fala "merda - com todas as letras!". Ultimamente, ela tem falado mais merda do que bosta seca....
Finge que não tem medo da morte, e pra provar que seu fingimento é de verdade, ela não procura médico quando precisa, não se cuida direito e não faz o que deveria fazer na idade que tem.
Quando o nosso irmão Hendrix nasceu, ela ficou doida de raiva porque os médicos tiraram dela as esperanças de ter mais filhos. Ela queria doze e só ficou com sete. Foi pena que o Hendrix morreu, ele fez falta pra mim - ia ser meu afilhado. A mãe ficou tão nervosa que disse que era exatamente por isso que ele morreu - porque eu era pé frio. A mãe às vezes é malvada, e nem percebe direito o que fala. Ela assustou muita gente com a cumplicidade dela com tal Santa Clara, eu mesma já vi gente morrer depois da mãe entregar a tal pessoa à santa, em troca de sol ou de outro agrado. Mas agora parece que ela parou com essa amizade. Eu acho é bom.
É uma mulher interessante a mãe. Todo mundo que conhece ela um pouco adora ela. É divertida, cozinha como se fosse uma cozinheira internacional, de Paris ou Roma, e fala de um monte de coisas interessantes. Mas, se ela se desagrada de alguém, aí "a coisa muda de figura", como ela diz. A mãe não poupa pólvora quando se trata de desabonar uma pessoa de seu desagrado. Então, o melhor conselho que eu dou é que as pessoas se mantenham amigas da mãe - é mais saudável pra todo mundo.
Como ela é advogada e porque sempre leu muito, a mãe é boa também nas escritas, especialmente se é pra mandar uma carta pra gente - quando a gente tá bem longe dela. Parece até que o coração dela só sabe gritar de longe, de pertinho, ele se cala. Acho que ele é do tipo encabulado, ou então é outra coisa que eu ainda não entendi.
Na escola, ela não interferiu muito, que eu me lembre. Mas eu lembro que um dia, minha irmã Deinha não quis mais estudar e a mãe colocou ela pra ser a empregada da casa – a Deinha voltou de carreirão pra escola, até virou filósofa depois de uns anos. Uma coisa com que a mãe não se conformava era de eu só gostar de livros finos, e ela ficou foi é muito agradecida ao José Mauro de Vasconcelos, quando eu li um livro dele inteirinho. E depois outro e depois outro... Acho que ela nunca percebeu que o que fez a diferença foi que o estilo dela não era o meu. Também isso eu tive de aprender sozinha, e como eu já disse, sozinha, leva um pouco de tempo...
Cheia de vaidade, já foi a mãe. Na verdade, ela tem é fases. Na fase da vaidade ela ficou foi linda. Seus olhos verdes, brilhando que nem duas esmeraldas, na pele bem bronzeada, faziam dela a mulher mais linda do mundo. Dava gosto na gente apresentar a mãe. Todo mundo falava da boniteza dela. Até hoje ela é linda, acho que é por causa da risada estabanada dela. Parece até que vida não tem mesmo problemas. Mas eu acredito que ela é uma artista, uma poeta a quem Fernando Pessoa não saberia explicar.
De todos os cremes do mundo, tudo que é coisa de manter a belezura, a única coisa que já vi a mãe usar, foi o Leite de Colônia e o perfume Givanchy. Hoje em dia, ela até que investe mais em produtos pros cabelos e um pouco de creme, mas o que trouxe ela até hoje, assim quase que toda conservada, foi o tal Leite de Colônia, nunca teve uma espinha na vida.
Das artes, ela entende da culinária. Mas já foi tricoteira das boas. Lembro bem de cada blusa que me fez. Lamento não ter guardado alguma, pra memória da família. Cada uma tinha uma história. Mas, de repente, são tantas pessoas na família e é tanta miséria neste mundo, que um dia a blusa já não serve mais pra um, e lá se vai pra agasalhar outro.
De seu guarda roupas, nada me causa inveja, mas adoro seus brincos. Queria ter a imponência que mãe tem. O peito erguido e a coragem de usar aqueles brincos enormes. Eu acho até que ficariam bem em mim, se eu tivesse a postura dela. Mas eu sou assim, meio encabulada, meio que sem muita certeza da minha boniteza. Quem sabe, quando eu ficar mais velha ainda, eu adquiro um pouco daquela "falta de vergonha" de ser mais eu.
O pai é que tenta e tenta agradar a mãe, mas não é tarefa fácil, coitado. Um dia, ele deu pra ela um porta pó-de-arroz que tocava música. Era lindo. Já faz muito tempo que isso aconteceu. Ela não gostou muito, e eu, pra ajudar ele a acertar, fui contar o que ela disse: "O que eu vou fazer com uma caixa de pó-de-arroz, que toca música?" No fim, ela ficou muito brava comigo, de verdade. E ele ficou triste - acho que preferia não saber. Depois da caixinha de pó-de-arroz, já tiveram muitos outros presentes, mas eu fico é de boca fechada.
Já completou setenta-e-cinco anos, a mãe. Vai completar mais um neste maio. A vida dela é de causar inveja em muita gente. Nada faz falta, nada é problema, nada tem mais importância do que o hoje. Acho que agora ela aprendeu a rezar, porque volta e meia leio uma palavrinha de amor cristão nas mensagens dela enviadas às netas e noras, por correio eletrônico. Mas Deus está de bem com ela, porque ela é agradecida do presente da vida. Acho que ela sabe disso, por isso ri tanto.
Gosto de ver a mãe aos domingos, gosto de saber que ela está lá, caraminholando sobre qual vai ser sua próxima aventura, seu próximo investimento financeiro - se em flores, panelas ou ingredientes culinários. Eu amo a mãe, com seus sins e nãos e por mais que fuja de alguns de seus exemplos, acho que no fim vou ficando um pouco parecida com ela, porque os bons exemplos são fortes e acabam sendo mais fortes do que os outros.
Que o Senhor abençoe a mãe e o pai e os meus irmãos.
Que a gente possa ainda ter muitos anos junto com ela e suas maluquices - a "vó maqaqa".
(27/02/2005)

To my little ones (on their graduation - 1999)


I am on this journey, which does not seem very long, to God knows where...
Through the glassy window I look for beauty and peaceful scenery.
Many sit next to me, one or more at a time. Many I don’t even notice, as they make no difference: there’s no sound, no perfume, no touch...
But others, so few in number, do have a fine scent, and their bodies’ heat warms my lonely heart as their voices enchant my heedful ears. We share a refined pleasure in showing each other the little rows of tiny flowers along the way. We happily laugh together as we see the cattle calmly grazing while the wind plays in the meadow and the sun light warms the workers’ backs.
We may, here and there, have the chance of showing each other the sun rise ahead of us, or its set not far behind...
So very few in number are those special souls. Some will get off before me, some will go on to farther stations, but the time we spend together does make a difference: it makes the journey worthwhile, it makes it pleasant, it makes it meaningful.
As you now move on to another seat, my friends, I’d like to thank you for the time you spent with me, I’d like you to know I’ve learned a lot with you and I shall always have you in my thoughts – as I proceed on my journey.
Enjoy yourselves. Make the most of your own journey and make sure Happiness is always sitting next to you. And remember: You are a well loved child.

Acróstico - Stevaux


S aber dizer o que me veio à mente depois de tanto
T empo sem vê-lo, sem ouvir falar de ti, sem
E sperar jamais
V oltar a tocar tua pele - num
A braço,
U m beijo amigo... Quisera saber contar como foi esse reencontro.
Xale, Xadrês, Xamâ... mais do que perdida no X, sinto-me perdida na confusão de meus sentimentos.

XOXO :)

Tu te ausentas de mim


(23/01/2009)
Busco na noite de meus pensamentos
Alguma presença de ti
Tateio na noite de minhas lembranças
Tocando memórias no ar

Música, dança, um abraço, a fumaça
Vestígios amorfos que posso tocar
Meu corpo embalado num lento compasso,
Dos corpos colados eu posso lembrar.

Busco na noite da minha memória
Um rosto, uma voz que eu já disse amar,
O resto de um cheiro que insiste em ficar
Perfuma meu sonho de te reencontrar

A turma, a garagem, vitrola a tocar
Imagens concretas que tento abraçar
Na noite profunda de meu recordar
A tua presença eu busco encontrar.

Despertar



(23/6/95)

O objeto de meu amor
Não há que me completar
Posto que não somos metades

Não há que se dividir
Posto que só inteiros
Somos completos

Não há que me causar ciúmes
Posto que completos
Nada tememos.

O objeto de meu amor
Há que ser amado, simplesmente,
Posto que o sendo me faz feliz.

A Profissão de Fé do Vigário Saboaino


A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do Emile, Emílio ou da Educação, de Jean Jacques Rousseau, 1755) é um texto que conduz à introspecção, ao pesar das forças que a Igreja exerce sobre seu fiel – sem que este tome consciência exata de suas dimensões. Nele, Rousseau nos apresenta o conhecimento que o Vigário adquire através de um longo e penoso processo de meditação que o leva a perceber profundamente seus sentimentos. Na defesa de que o encontro com Deus se faz a partir de sentimento sincero e não de leis externas, impostas à força e à revelia, Rousseau, na figura do Vigário Saboiano, relata o desabrochar de uma relação íntima, segura e realizada entre um homem e seu Deus.
Em um diálogo entre o Vigário e um expatriado calvinista, que forçou-se à conversão para poder garantir seu sustento e sobrevivência, o texto oferece-nos uma visita às possibilidades da dúvida e da confusão.
Num processo contínuo, Rousseau inicia sua meditação duvidando de absolutamente tudo que aprendera e fora induzido a crer ao longo sua vida, e atinge o ponto em que nada lhe faz sentido, sendo a incerteza seu marco de chegada. Perdido em sua grande confusão, causada pelos ensinamentos da Igreja (que corrompe, humilha, julga etc), ele inicia um processo de aceitação daquilo que o seu coração lhe diz – o que lhe parece naturalmente verdadeiro e irrefutável. Depois de aceitar sua própria existência, que reconhece através dos sentimentos que o afetam diretamente, ele observa a natureza, a ação e reação de suas forças, e admite que há uma vontade que move o universo e a anima.
Em seguida, reconhece a existência de objetos que ele pode observar, perceber e comparar. Distinguindo entre o perceber e o comparar ele defende que o primeiro é passivo, pois que se limita às sensações e o segundo ativo, uma vez que exige a ação da mente: “agir, comparar, selecionar são operações de um ser ativo e pensante, logo este ser existe”.
Sem a intenção de converter o outro, o Vigário fala apenas daquilo que o seu coração sugere – com muita simplicidade e sem profundos argumentos e pede ao ouvinte que consulte seu próprio coração, para que ateste a verdade de suas palavras.
Defendendo a consciência, ele defende a voz do coração, como superior àquilo que ensina as religiões, pois que aquela voz segue a ordem da natureza ao invés da ordem dos homens.
Em acordo com os ideais do Iluminismo, Rousseau, propõe o pensamento racional em substituição às crenças religiosas que, segundo os iluministas, bloqueavam a evolução humana. Assim, em seu processo racional, o Vigário Saboiano busca respostas que se justificassem para além da fé.
Acreditando, ainda que o homem é por natureza puro, os iluministas diziam que a sociedade o corrompia, portanto, haviam de manter-se puros e fiéis aos seus corações – à natureza e a Deus, de quem é imagem e semelhança.

“Are you a Teacher? Teach them!"


Recesso escolar – Janeiro de 1994. O SENAC São Paulo traz como palestrante, pela segunda vez, a professora inglesa, Jane Revell, autora de três séries de livros didáticos para o ensino do inglês para estrangeiros . No início do ano anterior, quando de sua primeira vinda ao Brasil, uma série de professores de inglês, entre eles eu, adquiriam os livros de Jane para ensino de inglês para crianças (Muzzy in Gondoland 1 e 2), pré adolescente (Cross Country 1; 2 e 3) e jovens (Connect 1; 2 e 3). Ao vê-la, nessa segunda oportunidade, eu tinha um “enorme problema” para entregar a ela – e uma igualmente enorme esperança de que o solucionasse. “As pessoas” não sabem o que são “somosas”, quem é Rene Magritte ou Sherazad, onde fica Majorca, se Boy George é homem ou mulher, que países da Europa ainda têm a monarcas... A grande dificuldade que apresentei a Jane, na época, tinha uma razão de ser – justa e justificável – no meu ponto de vista. Os livros de Jane eram (e ainda são) cheios de informações culturais. Eles traziam arte, costumes do ocidente e do oriente, músicas celtas e rock and roll de porão, etiqueta, informações sobre o dia a dia na Inglaterra e outros países etc. A grande dificuldade era: como conversar com os alunos sobre todas essas coisas das quais eles, em sua grande maioria, nunca ouviram falar – e nem sequer se interessavam em saber? Jane olhou-me nos olhos e perguntou: Are you a teacher?, acrescentando, depois de minha resposta positiva: Teach them!
Todo aquele conteúdo maravilhosamente montado tinha o objetivo de levar não somente aos “estudantes de inglês”, mas aos povos onde o inglês já se infiltrava de maneira irreversiva, cultura, arte, história, compreensão das diferenças entre os diversos povos, diferenças entre as pessoas – “cultura para tolerância”.

Mestrado em Educação - Maio de 2009. Gianni Vattimo me é apresentado como um pós-modernista, suas ideias, como ele mesmo diz, já foram discutidas há 125 anos, por Wilhelm Dilthey. Vattimo propõe uma reforma no ensino. Ainda que não faça uso dessa expressão, sua proposta é uma reforma – uma transformação da escola em suas metas e diretrizes. O objetivo já não é formar técnicos especialistas, como ditava a velha ordem positivista, o comando colonialista, eurocentrado ou (Vattimo também não diz, mas atrevo-me a incluir) centrado no poderio norte-americano. De acordo com Vattimo e a linha de seguidores da nova proposta, há que se formarem cidadãos cultos – e aqui fala-se de uma cultura que vai para além do conhecimento específico do objeto sobre o qual se trabalha – seja uma máquina, um departamento ou toda uma empresa. A crescente aproximação do povos, das culturas, dos saberes, das filosofias e, de forma bem mais delicada, das religiões tem trazido consigo a necessidade urgente de humanização nos relacionamentos.
Para ilustrar sua posição, Vattimo cita a entrada de albaneses na Itália – homens e mulheres que além de não terem uma formação profissional adequada às necessidades daquele país, ainda enfrentam situações de clara e profunda incompatibilidade. O quê, além da educação hermenêutica (conforme o conceito de Richard Rorty), poderia superar os limites impostos pela incompatibilidade (ou intolerância)?
Os seres humanos talvez nunca tenham deixado de ser humanos – na racionalidade e irracionalidade que nos caracteriza (embora às vezes tenhamos a impressão que isso aconteceu aqui e ali...). Mas, também, talvez nunca tenhamos estado tão próximos uns dos outros em tempo de paz, tempos que já não admitem conquistas das terras de uns por outros, conquistas de povos, escravidão humana, domínio imposto - de um sobre muitos. As conquista tecnológicas, a ciência, com toda sua “sabedoria”, a vitória do capitalismo – o percurso da humanidade ao longo de sua história trouxe-nos para este ponto onde estamos no momento presente. Contudo, em acordo com Vattimo penso que a escola deve retomar as humanidades, para que os homens e as mulheres possam utilizar, de forma mais consciente, todo o fruto daquelas conquistas, que possam “cooperar conscientemente para dar à sociedade a forma” que desejamos.
E os professores? O que lhes compete? Compete-lhes “ensinar”.

quinta-feira, maio 13, 2010

Elena


She had been there for hours, sitting in front of that old stubborn computer that would every now and again give her that stupid message saying she had done something illegal and that it would turn off…
“Something illegal”, she’d think every time she turned it on again. “What is illegal?”
Elena had just walked barefoot out of a thirteen year marriage, which she’d thought would last a life time.
He had cheated on her. No, he had betrayed her, that is the word: BETRAYAL.
Three months had already gone since he had taken his last look at her eyes. And then, on that warm summer night her younger sister called her from a public phone booth. “Please Elena, you must forgive me. Please help me. I don’t know what to do.” Elena and Susan had never been anything more than sisters. Never friends or good comforting shoulders one to another.
“What is the matter Susy? Where are you?”
“Please say you forgive-me. I need you to forgive-me. I couldn’t help it.”
“What are you talking about? Where are you?’
“I am in front of his house. Please come pick me up. I can’t move…”
Susy was crying a lot, she seemed out of her mind, and Elena had no idea of what could have happened. “Susy, calm down, she said. Tell me where you are.”
“Here, just in front of Mike’s house. Please, you didn’t tell me you forgive me.”
“Stay there. Don’t go anywhere, don’t talk to him. I am going to pick you up. Just wait a minute.”
Elena was confused. She went out on the street and walked to her brother’s house, not far from hers. She told him Susy was in trouble and they needed to pick her up.
They got on the car and Harry drove to Mike’s house. It was a twenty minute drive, and they didn’t say a word. When they got there, they saw Susy sitting on the pavement. She looked insane. Elena saw a light in Mike’s house, she walked towards it, came by the window and looked inside. There he was, with his new girlfriend, the mother of his six month old son, whom Elena had hidden from her family, trying to protect her children from a greater shame. She knocked on the window, and said to him something she would not remember a second later. She was astonished at the possibility that her thought could be right. The woman tried to say something back, but Elena ignored her, she turned to her sister, put her in the car and Harry drove them back home, in the most horrifying silence.
He left them both in front of Elena’s house and went back to his house. “If you need something, call me, will you? he said “Okay, bye”, she replied.
Susy walked inside the house with her head down. She went straight to Elena’s bed, and lay there, as if the entire world had cracked on her head.
“So”, Elena tried a word. “How long has it been?”
“Twelve years”, was the reply. “He has always told me I was the one he loved. I’ve waited for all these years and now when I thought we would be happy, I find him with this woman.”
Elena, couldn’t say a word. She walked slowly to the living room, looked up the number of Suzy’s psychiatrist and called him.
“Well, you have to be strong”, he said. “I know this is something odd to ask from you, but your sister is a potential suicide, and you are the only one who can back her up. Please be there for her. Comfort her, and make sure she has company all night.”

Three blank pages


There are quite a few things that represent a “monster” in our lives. As a child, I always had some attraction for them. I loved the night monsters, and the ones who lived in the depth of the oceans, and also those who silently came to the kitchen to steal from mom’s cookies’ pots. I loved them all, especially because I knew they would leave as soon as I wanted them to. All I had to do was to call mommy and ask her to make them go. She would then tell me some story of good fairies and nice sweet girls, and the ugly creatures would simply vanish – monsters would never stay anywhere where there were good fairies and nice sweet girls…
Nowadays, I frequently have my three year-old grandson on my lap begging me to tell him a story. “Which one will we have today?” I will always ask. Usually he wants one with wolves, and witches, and – monsters, but as soon as they come in the scene, he will put his little soft hand on my lips and say, “Grandma, I’ve had enough of this, tell the story of Winnie the Pooh.”
One would say that as you grow up, you grow out of fear of monsters, right? Absolutely wrong! It is funny how, as we age, that weird feeling ripens within us. We wish for monsters, we search for them – and once we do find them – we want an easy and fast way out. But the really funny thing is – if that is funny at all – that the older we are, the bigger the “monsters” seem to us.
At the age of 40, I suddenly started believing that I could be a writer. It was all very nice until I decided to start a school for writers. During all my life, on weekends and holidays at my dad’s, the kids in the family would always gather wherever I was, and ask me for stories and jokes and games. My relatives and friends would tell me that I had “a way” with the words, so one day I decided to write a story – publish a book, and turn myself into an “immortal”. Well, after some real hard work, the book was there, but I didn’t seem to be immortal yet, so I gave it a little thought and said to myself – “What you need is a good school for writers”. And I found one.
At the beginning it was all nice and fun, “Read this and do the same”, “Read that and do something similar”… But as the course was developing, there came the day when the biggest of all monsters appeared in the scene – huge, hairy, and hungry, in the shape of a homework. The monster, I mean, the task was to fill three blank pages, with something “from within”, a past experience, something somebody would be interested in reading. What in the world could that be?
For four months, I thought about it. What would I have to say that could interest anyone? Why would anybody read something about me and be interested from the first to the last line?
As time went by, the first monster brought some friends, and then more, and more. By the end of the 122nd day, I found myself sweating during the night, reflective during the day and shivering through day and night. I had to do something; and no teddy bear would give me a hand, as there were no teddy bears in my past experiences – not as something to interest a reader anyway…
But I finally found a solution.
On a rainy day, as my boots were wet and my hands were freezing, there was I, in front of the huge, fierce, frightening, scary Blank Paper. I looked at it deeply, in the center of its heart, and said to myself – in a very low voice, so it would not hear me – “My dear, if you really want to be a writer, you will have to beat this Goliath”. And so I did. I started filling the first page with words, and feelings, and truths. Soon there were three complete pages, filled from top to bottom with words that meant not only to tell a story and occupy a space, but also to beat a monster, and show others that even after-age, one can fight and win battles against inner phantasms, usually brought to us, by our own creation and lack of self-confidence. I beat it this time; hopefully I will beat it again in the future, should it come to me once more.
Anyway, the feeling is gratifying and refreshing – and the best of all - the task has finally come to an end.
Page 3!

Um beijo a Sinhana



Numa dessas noites em que entregamos a Deus alguns momentos que não nos foi possível preencher com tarefas diárias e lucrativas, encontrei-me pela primeira vez num centro espírita onde se desenvolvia um trabalho com pretos velhos.
Sobre a mesa, no meio da sala, havia uma jarra d’água que por alguma razão me prendia a atenção. Aos poucos, senti-me completamente desligada daquela realidade e deixei-me transportar à minha infância; um tempo em que a natureza e eu éramos indistintas.
Minha família tinha um belo sobradinho no Cerrado, não distante do centro de Sorocaba, onde meus irmãos e eu estudávamos. Éramos muitos filhos e cabia aos mais velhos cuidar dos mais novos.
Maria Déa, minha irmã mais velha, era a que me levava ao grupo escolar. Minha mãe nos dava dinheiro para as passagens de ônibus, mas costumávamos ir a pé. O dinheiro era reservado para um picolé, um doce, ou, não raro, para uma fotonovela que compraríamos na Tabacaria da Sé, nos dias em que corajosamente matássemos as aulas. Naquele tempo, não era fácil matar as aulas; a cidade era pequena e as crianças uniformizadas, em horário de aula, não passavam despercebidas pelas ruas do centro. Porém, minha irmã era astuta; com a sabedoria que têm as irmãs mais velhas, ela me conduzia por entre as árvores e bancos da praça da Sé e, com com muita agilidade, num minuto, estaríamos no Zoológico da cidade que ficava então, às margens do rio Sorocaba, sob a ponte Delosso..
Deinha era sempre a primeira a ler a fotonovela; ela era a mais velha, a mais sábia e – a mais forte.
Enquanto aguardava a minha vez, gostava de me deitar à beira do rio. Passivamente deixava-me envolver por aquele ruído quase inaudível que aos poucos fundía-se ao ruído da vida que fluía em minhas veias.
Num desses dias, lembro-me de estar muito cansada, quando me deitei, como de costume, enquanto Déa buscava um lugar à sombra para ler em paz. Acho que adormeci.


De repente ouvi a voz de Sinhana, que me chamava aos gritos: “Venha cá negrinho matreiro. Não vê que o Sinhozinho quer visitar a roça?”
Sinhana sempre me chamava aos gritos. Ela era uma boa mulher; talvez fosse mesmo a minha mãe – não sabíamos bem. No dia em que eu vim a o mundo, veio também um outro moleque; de igual porte e semelhante feição. Fomos, os dois, colocados juntos, para que uma só negra nos amamentasse. Sinhana, por sua vez, teve de dar seu peito ao filho de Sinhozinho que havia nascido alguns dias antes e que não podia ser alimentado pela mãe pálida e franzina.
Alguns anos mais tarde, o moleque que crescera comigo foi vendido para a fazenda do Sr. Aguiar, do outro lado do rio. Sinhana nunca soube ao certo qual de nós era seu filho, mas dava-lhe conforto pensar que podia ser eu.

Aos berros de Sinhana, levantei-me de um só golpe e corri para ajeitar o cavalo predileto de Sinhozinho. Era um baio grande e ligeiro – inveja dos arredores.
Sinhozinho pegou as rédeas do animal e num gesto já conhecido meu, ordenou-me que corresse. Ele sempre me levava consigo as suas cavalgadas na roça; receava ser molestado por algum “negro injusto”, dizia.
Nunca entendi bem o porquê daquele medo; era ele quem tinha o berro preso à sela, era ele quem comandava o feitor e, na pior das hipóteses, era ele quem tinha o baio. De qualquer forma, gostava de levar-me consigo.
Ao seu sinal, então, pus-me a correr em direção à roça. O baio trotava acelerado e, não raro, passava-me a frente.
“Corre moleque”, dizia Sinhozinho. “Corre que não vim aqui para passear.” Isso sempre acontecia assim.
Um dia, porém, decidi que era hora de mostrar àquele homem quase sem beiço que não poderia continuar correndo daquela maneira; minhas pernas eram fortes e ligeiras, mas não poderia continuar correndo à frente do baio, varrendo sempre o caminho por onde eles passariam.
Foi então que resolvi fugir. Já ouvira falar de muitos negros fugidos e sabia que era arriscado; mas resolvi tentar minha sorte.
À noite, depois que todos foram dormir, sentei-me ao lado de Sinhana, ao pé do fogão, comi um pouco de canjica com bolo de fubá que ela fizera, e falei-lhe de meus sonhos de viver livre, de ir ao mar e lançar-me, quem sabe a nado, às terras de África. Tantas histórias eu já ouvira de Àfrica, histórias cantadas pelos negros nas roças, ou nos cantos das senzalas. Sinhana arregalou seus enormes olhos negros e danou a dar-me tapas por toda pele. “Negrinho bobo, você foge, eles te pegam e Sinhana fica sem filho nenhum”.
Senti pena de Sinhana, mas meu sonho de liberdade era maior do que qualquer outro sentimento e, antes do alvorecer, embrenhei-me na mata às margens do rio que havia atrás da casa grande e segui o rumo da correnteza que me levaria ao sol. Eu sabia que o sol nascia no mar e era para o mar que eu queria ir.
Não sei quanto corri. Sentia fome, minhas pernas tremiam e minha vista falhava. Caí ao chão exausto e acho que adormeci.
De repente, num susto, abri os olhos e dei com dois homens enormes sobre mim; um branco e um negro. Eles não fizeram perguntas. Não pareciam ter dúvidas. Aliviaram um pouco da tensão em que viviam sobre mim e, por fim, ataram meus pés a pesadas correntes.
“Corre moleque”, disse o negro.
Meu corpo todo doía, minha pele sangrava e mesmo que não estivesse amarrado, não poderia correr – mas tive de andar. Andei um caminho que parecia não ter fim; um caminho que me distanciava, cada vez mais, do sol...

Sinhana olhava de longe, com os olhos cheios d’água e eu evitava encará-la.
Foram cinquenta chibatadas no couro nu. O número havia sido estipulado pelo filho de Sinhozinho que, apesar dos choramingos de Sinhana, não parecia ter no peito qualquer coisa que se assemelhasse à piedade.
Passei toda a noite atado ao tronco. Pela manhã, fui solto após um discurso de Sinhozinho a todos os negros que pudessem estar pensando em fugir.
Fui, então, levado à senzala e lá pude chorar baixinho toda a dor do físico e da alma...
Os dias seguintes se passaram sem muita anarquia ou novidade. Era sempre assim depois de uma “boa lição”.
Voltei a correr à frente do baio e passei também a trabalhar no corte de lenha para o fogão, no transporte do angu para os negros na roça e no debulhe do milho.
O filho do Sinhozinho dizia que se estivesse trabalhando, não estaria sonhando com bobagens.
Era verdade. Eu não sonhava com bobagens. Tudo com que sonhava era o mar. Mas não ousaria buscá-lo tão cedo. Dera minha palavra a Sinhana.
Certa feita, quando empilhava a lenha que seria cortada, meti minha mão num feixe e deixei-me picar por uma aranha que ali fizera seu ninho. Foi tanta a dor que senti que me pus a correr como um louco.
Sinhana, sem saber o que se passava, implorava para que eu parasse. O feitor ordenou-me que voltasse imediatamente, e eu corria desesperado em direção à água fresca do rio que deveria acalmar a minha dor.
Sinhozinho, atraído pelos gritos, saiu à varanda com seu berro em punho e deu três tiros.
De súbito, senti-me rolar lenta e pesadamente, barranco abaixo. Minha visão estava turva, calafrios e ondas de calor percorriam simultaneamente todo o meu corpo. Deixei-me, então, cair n’água fria e límpida do rio que chamavam de Sorocaba.

Ao longe, Sinhana me chamava aos gritos.
Já não sentia dor quando, passivamente, deixei-me envolver pelo estrondoso ruído das águas que violentamente fundia-se ao silêncio que interrompia o fluir da vida em minhas veias.

Um grito que não existiu


Às cinco horas e quarenta e cinco minutos da manhã, ao soar escandaloso do relógio de cabeceira, Eco despertou, levantou-se lenta e calmamente e abriu a janela de seu quarto. Sentia uma estranha necessidade de iniciar aquele dia saudando as flores de seu jardim. Mas, nessa manhã, Eco não pode vê-las, as flores não estavam lá; era, na verdade, como se nunca tivessem estado. Em lugar de flores só havia mato, pragas, ervas daninhas... Eco não compreendeu o que teria acontecido, mas também não dedicou muito tempo a pensar no assunto. Assim, o “desaparecimento repentino” do jardim não alterou seu ritmo. “Preciso de um café”, pensou.
Ao ir preparar o café da manhã, passou pelo dormitório que havia sido de seus filhos, abriu as janelas e murmurou um “bom dia” suave, sem esperança de resposta - não porque as crianças já não estivessem ali, mas porque seu “bom dia” há muito não obtinha qualquer resposta. Caminhou em seguida para a cozinha, abriu as cortinas e, só neste momento, notou que o dia estava acinzentado, o quintal encharcado, o varal, cheio de roupas, prostrado ao chão. Era evidente que chovera a noite toda. “Que terá havido com as flores? - pensou - Talvez a chuva as tenha levado. Talvez o vento tenha sido impiedoso...”

Depois do café com pão e queijo, Eco tomou um banho bem quente e demorado, como sempre costumava fazer; vestiu-se em roupas confortáveis, quentinhas, e voltou a tomar mais um café.
Às sete e cinco sentou-se à frente de seu computador e começou a escrever. Trabalhava em seu terceiro romance; a editora dera-lhe um prazo menor desta vez e ela teria de terminá-lo logo. Seus pensamentos, então, fugiram do jardim, das crianças, da chuva... Tudo em que pensava era no que deveria acontecer a Narciso e Astréia – ela precisava dar-lhes um final feliz – leitores esperam um final feliz.
Eco trabalhou por horas a fio até que sentiu uma certa fraqueza, seus músculos estavam rijos, sua cabeça doía. Talvez tivesse fome. Antes de desligar o computador checou seu correio eletrônico, na esperança de haver lá um alô de um dos filhos, ou talvez de um amigo... Há meses não recebia senão notícias das editoras e propagandas de novos sites. Nesse dia não foi diferente... Com um falso descaso, Eco levantou-se e dirigiu-se à cozinha, em um movimento lento, quase automático. Abriu uma lata de atum, uma de milho e uma de ervilha; picou uma cebolinha, um pouco de cheiro verde e, lançando mão de uma boa colherada de maionese, fez uma salada que comeu com pão, acompanhada de goles de um refrigerante já sem gás que era tomado aos poucos – há dias...
Ainda à mesa, Eco cogitou a possibilidade de falar com alguém, sentia a necessidade de trocar algo, embora não soubesse bem o que ou com quem. Ela vivia sozinha desde que se divorciara, há alguns anos, e seus filhos optaram por viver suas próprias vidas em cidades diferentes. A filha estudava medicina em São Paulo, e o filho, já formado em música, vivia em Milão com a esposa e o neném, que ela ainda não tivera a chance de ter em seus braços. Eco havia conhecido muita gente ao longo de sua vida, mas fizera poucos amigos. Com o tempo, os conhecidos tomaram seus rumos, e os amigos... Bem, talvez não fossem tão amigos assim. Eco já não sabia do paradeiro de nenhum deles. Ela os havia procurado uma ou outra vez, mas não conseguira manter o contato. Na verdade, ela mudara muito; tornara-se áspera em resposta às peças que a vida lhe pregara e talvez as pessoas não se sentissem muito à vontade diante de seu frequente mau humor e sua pouca habilidade em desfrutar o ridículo...
Nesse dia, contudo, ela estava realmente disposta a falar com alguém; tentou telefonar para dois ou três números de sua agenda, mas não obteve resultado positivo. Então, voltou ao computador e mais uma vez abriu o correio – quem sabe algo novo teria chegado neste ínterim...
Nenhuma mensagem nova! Com um ligeiro suspiro, disfarçou seu desapontamento, acomodou-se em sua cadeira e retornou aos escritos...

À noite, ela estava exausta, sua cabeça doía ainda mais, sua nuca e ombros ardiam como se houvesse brasa sobre eles. Resolveu sair um pouco. Trocou de roupa, colocou os sapatos de passear, escovou os belos cabelos louros, lisos como águas serenas em alto mar, borrifou uma colônia suave por cima do casaco e saiu.
No carro, em direção ao centro movimentado da cidade, pensava em Narciso e Astréia. Como deveriam acabar? Ela os queria longe um do outro, pensava que talvez eles devessem recomeçar suas vidas e tentar ser felizes com outros pares. Porém, o tempo era curto demais para que se pudesse criar uma situação ideal para cada um dos dois; o romance deveria ser entregue com urgência. Eco precisaria de mais alguns dias, ou meses, para poder tecer as minuciosas artimanhas da felicidade chegando depois de uma triste e doída separação. Com a pressa da editora, a única saída seria fazer com que Astréia o perdoasse e o permitisse voltar para casa como se nada houvesse acontecido – a traição, os dias de tristeza, a vergonha, a humilhação...
De repente, Eco percebeu que não estava indo a lugar algum, dirigia em círculos há um longo tempo. Sentindo-se um tanto tola, estacionou seu carro num lugar qualquer e resolveu andar até um barzinho, ou um restaurante. Talvez encontrasse alguém interessante e pudesse trocar algumas ideias. Enquanto caminhava, via, por todo lado, gente rindo e falando alto. Pensava em o que os divertia tanto. Há muito ela não ria às gargalhadas.
Depois de ir e vir de um lado e de outro na larga avenida principal da cidade, Eco decidiu entrar num Piano Bar e pedir um chopp. Aquele parecia ser um local aprazível. As pessoas ali não eram tão barulhentas, e sorriam mais do que riam, isto a agradava. Sentou-se a uma mesa um tanto distante do piano, de forma a poder ouvir o almejado som de suaves vozes humanas, e aguardou ser servida.

Ao aproximar-se o garçom, Eco esboçou um sorriso franco de quem quer, finalmente, mostrar sua simpatia. Todavia, o homenzinho, que devia estar lá com seus próprios pensamentos, nem pelo dever de fazê-lo devolveu-lhe o sorriso. Eco, decidida a não desistir, olhou a sua volta para ver se reconhecia algum rosto na multidão, algum par de olhos que pudessem estar sendo dirigidos a ela, alguém com quem pudesse partilhar aquele momento.
As pessoas, contudo, lhe eram totalmente indiferentes. Subitamente, sua aguda e sensível percepção fê-la ver, como se através de um velho e cruel espelho encantado, que ela se tornara invisível aos olhos humanos...
Não havia ali um único ser disposto a dirigir-lhe um olhar ou uma palavra; impossível seria pretender que alguém pudesse estar propenso a ouvi-la.
Como se um raio a tivesse atingido, Eco sentiu o impiedoso golpe da solidão constatada, indiscutível. Simultaneamente, ela foi tomada por uma violenta fisgada no peito. Levando as mãos ao ponto de origem da dor, tão insuportavelmente dominadora, sentiu seu corpo contrair-se, fechando-se como uma ostra que, ao proteger-se, esconde seu misterioso e delicado interior.
Com a mente envolta em pensamentos irrequietos, Eco via passar à frente de sua visão obscurecida os filhos, a chuva da madrugada, o jardim... Que teria acontecido ao jardim? Ele desaparecera de sua janela como a alegria desaparecera de seu viver – sem que ela o percebesse. Não notara que aos poucos o brilho e o colorido davam lugar às coisas nocivas, pouco ditosas. Em meio a essas reflexões tardias, sem deixar evadir de si um mínimo ruído, Eco tombou – completamente sem vida - no áspero e álgido piso do bar.
Em segundos, havia a sua volta uma multidão de olhos atentos, que vinham de todos os lados. Pessoas pareciam brotar de todos os lugares. Vozes curiosas demostravam um interesse desmedido por aquela incógnita criatura. Todos se perguntavam quem seria, de onde teria vindo, o que teria lhe acontecido, por que estaria sozinha...

E sigo em frente...


Aos meus Amigos,

Eu me encontro nessa jornada, que não parece muito longa, rumando só Deus sabe para onde...
Através da translúcida janela, procuro por beleza e cenários tranquilos.
Muitos sentam-se ao meu lado - um ou mais de cada vez. Muitos nem noto, pois não fazem diferença: não há sonoridade, perfume, toque...
Mas outros, tão poucos em número, têm uma delicada fragrância, e o calor de seus corpos aquece meu coração solitário, enquanto suas vozes encantam meus ouvidos atentos. Partilhamos um refinado prazer ao mostrarmos uns aos outros os pequeninos jardins ao longo da estrada. Em serena alegria, contemplamos o gado pastando calmamente ao som da melodia assobiada pelo vento que brinca na pradaria iluminada pelos mesmos raios que aquecem as costas dos trabalhadores.
Às vezes, aqui e ali, temos a chance de mostrar um ao outro o pôr do Sol, já atrás de nós, ou o seu raiar logo mais à frente...
Tão poucos, em número, são esses espíritos especiais. Alguns desembarcarão antes de mim, outros irão a estações ainda muito distantes, mas o tempo que passamos juntos faz uma grande diferença: faz a jornada válida, prazerosa - a faz significativa.
Conforme eu agora me mudo para outro assento, meus amigos, gostaria de agradecer-lhes pelo tempo que passaram comigo; eu gostaria que soubessem que aprendi muito com vocês e que os terei para sempre em minha memória – enquanto prossigo em minha jornada.

De Vlados, liberdade e sonhos de paz



De Vlados, Alexandres e sonhos de Paz...

São Paulo, 23 de outubro de 2005. No mesmo dia em que milhões de brasileiros lançavam seu olhar sobre uma urna eletrônica para decidir sim ou não ao comércio de armas de fogo, na Catedral da Sé, um grupo de pessoas privilegiadas participou do culto ecumênico em alusão aos 30 anos de “vida eterna” de Vlado Herzog, um dos tantos buscadores da paz torturados e mortos pela ditadura militar. Seguramente uma experiência única em suas vidas.
Dom Paulo iniciou às 16 horas o ato que contou com a participação de representantes de 20 diferentes religiões. É difícil ilustrar, em palavras, o que se viu e ouviu naquela tarde. Dar ao texto escrito o colorido real das emoções que foram ali partilhadas é tarefa impossível.
Dom Paulo Evaristo Arns iniciou um ato inter religioso, fazendo referência a seu texto dito há 30 anos, na primeira missa ecumênica do Brasil, no dia 31 de outubro . Seguiram-se representantes das igrejas Luterana, Metodista e Anglicana, das ordens do Sufismo e Sunita, do Islamismo, do Budismo da China, do Tibet e do Japão, do Hinduísmo, do Candomblé e da Umbanda, do Espiritismo e Espiritualistas, da Fé Bahá’í, do Tambor de Mina, do Xamanismo e do Brahma Kumaris. Cada um em seu idioma, com seu rito especial, cantava à Paz, à união dos homens, ao direito à vida, ao respeito, à liberdade, à não violência, ao direito de ver Deus com seus próprios olhos (100% dos presentes salientaram a existência de UM ÚNICO Deus, sob diversos nomes).
O Coral Mundial, composto de mil vozes, sob o comando emocionado do maestro Martinho Lutero (um capricho do destino?) iluminou a Sé enquanto falava aos ouvidos de Deus, que sem sombra de dúvidas sentou-se para assistir... e sorriu... esperançoso de nós.
Como último representante religioso a falar, o Rabino Henry Sobel trouxe novamente o calor às faces dos presentes – num clamor dirigido não somente às autoridades, mas também a cada um dos indivíduos ali presentes ele repetiu suas palavras ditas há 30 anos: “Se queremos render tributo à memória de Vlado, temos que preservar dentro de nós o sentimento de indignação e inconformismo, jamais nos acomodando à violação dos direitos alheios. O silêncio é o mais grave dos pecados. A indiferença em face do mal é um incentivo ao recrudescimento do mal. Se fechamos os olhos, se viramos a cabeça, se fingimos não saber, tornamo-nos cúmplices. Digamos "não" à tortura. Alto e bom som, digamos "não" à violência institucionalizada. E, inspirados pelo legado de Vladimir Herzog, digamos "sim" à dignidade humana.”
Depois, o Rabino tomou Dom Paulo pelas mãos e, em frente a centenas de espectadores (além do próprio Deus), entoou um canto em hebraico - um canto judaico na catedral católica de São Paulo. Comovido, o líder mulçumano levantou-se, tomou a outra mão do Rabino, fechou os olhos e sorriu... Em seqüência, todos os outros líderes se levantaram, seguram-se às mãos uns dos outros, de forma que se viu ali a possibilidade de o homem reconhecer-se Homem - Irmão, Amigo, todos filhos do mesmo Pai, todos sedentos de Amor e de Paz. Em seguida, encerrando o evento, o Coral Mundial emendou sua voz à do Rabino e acompanhou o povo, em lágrimas, às portas da catedral, sob a canção de São Francisco de Assis.

“Vlado não foi a única vítima do establishment naquela época. Nos anos da ditadura militar no Brasil, centenas de opositores do regime foram espancados em repartições públicas. Muitos foram mortos. A tortura era o meio preferencial utilizado pela polícia para buscar informações sobre outros militantes. Com a redemocratização do País, teve-se a impressão de que a tortura acabara. Infelizmente, era uma impressão falsa. A tortura, um crime inafiançável de acordo com a Constituição Brasileira, continua a ser praticada pelos agentes do estado, aviltando toda a polícia. O espancamento, o choque elétrico, o pau-de-arara são técnicas usadas rotineiramente. Nesta nossa civilização que se julga tão avançada, ainda é corriqueira a tortura de presos, a pretexto de puni-los pelos crimes que cometeram ou para extrair confissões de crimes que não cometeram. A tortura precisa ser abolida. O que falta é a determinação da sociedade de não admitir que a tortura seja praticada no País. Não basta alguns defensores dos direitos humanos tentarem pressionar o Governo para que proíba efetivamente a tortura. Tal pressão tem que vir da sociedade como um todo. Em última análise, os cidadãos da nação têm que responder pelos atos — e pela falta de atos — do seu Governo.” Rabino Henry Sobel

"Balada para alguém distante"
12/02/69

Por que alguém, mais dia menos dia,
Fica ausente?
Brincando com o coração da gente
Tirando a nossa alegria...
Por que alguém, mais dia menos dia,
Deixa tudo?
Deixando também um coração mudo
De tanta melancolia...
Por que alguém, mais dia menos dia,
Parte para um lugar distante?
Causando uma dor talhante,
Que ninguém mais avalia..."

"Minha presença
A dor que te devora
Muitos a tem agora.
Reage!
Luta contra ela,
Pois senão te dilacera
E ainda mais vais sofrer,
Pois continuará a doer.
Estou aqui.
Aqui, bem junto a ti.
Posso não estar presente
Mas por mais que me ausente
Sempre estarei aqui.

Flávio Carvalho Molina, militante da ALN e MOLIPO , (morto sob tortura em 1971)
Descanse em paz!