sexta-feira, maio 20, 2011

Carta aberta a minha mãe

(painting by Thea Burger - http://shadesoflife-thea.blogspot.com/)


Oi, mãe, bom dia.

Tudo bem?
Tá ocupada?

Senta aqui um pouquinho, vamos conversar.

Eu já te disse que te amo?

Então... tem outras coisas que também talvez não te tenha dito muitas vezes – é sobre isso que quero conversar.

Sabe, a maioria das minhas amigas já não têm mais suas mães. E eu sou uma pessoa muito feliz por ter você. Não só pelo status de ter mãe viva, aos 56 anos de idade, mas por ter você.

Algumas vezes na vinha vida, como é natural (está em todas as revistas de Educação), senti vontade de ter outra mãe, me achei injustiçada por você, senti que não me amava... Lembro-me com frequência que, quando estudava no colégio das madres, falava-se que se deixássemos os sapatos virados pra baixo, a mãe morria – algumas vezes eu virei os meus sapatos – segundos depois, como é natural, eu corria lá e desvirava e chorava minha impotência de vingança. “Bater na mãe” endureceria o meu braço pela eternidade e, no caixão, ele deveria ser serrado para poder entrar, e minha alma carregaria o braço solto – duro – até o dia do juízo final... e eu chorava minha impotência. Poderia culpá-la por ter me colocado em colégio de freiras – mas, agradeço, fez muita diferença – positiva – na minha vida.

Lembra-se de meus diários? Puxa vida, eram os meus “únicos e verdadeiros” amigos – e você os lia e “comentava”... Ninguém acredita nisso quando eu conto – mas acho que é natural, deve estar em alguma revista também...

Sabe, quando me ponho a recordar minha infância e juventude, a pessoa que vejo mais presente em toda a minha vida é você. E ainda assim, conversamos tão pouco...

Eu também tenho boas lembranças – muito boas lembranças – lembra-se da noite anterior ao meu primeiro casamento? Você estava na cozinha com a sua melhor amiga, enquanto eu eperimentava o vestido de noiva (que sua amiga fez pra mim), e você me disse algo assim: “Filha, você não precisa se casar. Se estiver grávida, eu viajo com você, você tem o filho e eu o crio como se fosse meu”.

Levei tantos anos para entender “tudo” o que estava contido nessas frases – tantos anos...

Naquele momento eu queria ter dito: “Mãe, eu não estou grávida e não quero casar, mas ele disse que se não casar com ele, ele vai contar pra todo mundo que a gente já transou...”. Mas eu não disse nada, só chorei minha impotência.

Sabe, no fim, foi bom ter casado com aquele cara – sem ele, talvez jamais tivesse saído do meu mundinho de desejos de vingança e de impotência – bom, na verdade, ele não foi o único responsável pela minha saída daquele estado de coisas, a vida me foi “farta” em “oportunidades”.

Mas, vamos voltar a nós.

Eu queria que soubesse de algumas coisas muito importantes pra mim.

Quero dizer que amo meu pai – muito! E que sei que ele me ama – muito! Mas em toda a minha vida eu sempre soube e sempre senti e percebi que ele é meu pai, não meu homem. Sempre soube disso. Eu não o desejaria pra meu homem – sempre gostei de homens mais jovens... rsrsrsr Às vezes senti que te incomodava o nosso amar – meu e dele. Talvez, se conversássemos mais, pudéssemos ter falado sobre isso. Mas falo agora. Meu pai é tão querido pra mim quanto é minha mãe. Entre nós existe também menos conversa do que eu gostaria que houvesse – e houve vezes, acredite – em que cogitei “virar os sapatos” pra ele também...

Sabe o que eu penso, mãe? Penso que a gente complica muito a nossa vida – todo mundo. Acho que é normal! Mas é um porre. Sinto que eu poderia conversar mais com meu filho, e sinto que muita coisa entre nós está sendo deixada de ser dita – por motivos diversos... Com a minha menina é diferente – acho que nos falamos algo bem perto do tudo.

Mas quer saber? Por incrível que pareça, sinto que aprendi a falar, com você...

Tenho lido muito, você sabe – há alguns anos comecei a ler e acho que já compensei tantos anos sem leitura no passado. Nessas leituras vou descobrindo coisas de mim – vou me vendo e me percebendo com olhos cada vez mais aguçados... E acho que vou gostando de mim. Isso é muito bom, porque na medida em que gosto mais de mim, sinto que algo se transborda e se espalha a minha volta.

Nesse espalhar, deixei muito “gostar” e “amar” chegar até você, sabia?

Eu aprendi muito na minha vida, mãe. E das coisas que aprendi, gosto de ter comigo o reconhecimento de quem me ensinou, quem me deu as oportunidades – porque acredito muito na gratidão e desejo agradecer àqueles que me ensinam e me dão oportunidades.

Assim, queria te agradecer por algumas coisas. A lista não é muito longa, mas acho que pode ser um bom começo.

Quero te agradecer, do fundo do meu coração:

- pelos nove meses que me carregou, sendo que havia opções de não fazê-lo;

- por ter me carregado os nove meses e ter se cuidado, de forma que eu nascesse forte e saudável;

- por ter cuidado de mim, sempre que eu estive doente ou, de alguma forma, mais dependente;

- por ter sempre garantido o meu sustento e estudos,

- por ter me ensinado a ser justa e honesta;

- por ter enfeitado as paredes da cozinha com aquelas fotos de comidas gostosas e me ensinado a “fazer de conta” quando as coisas não vão tão bem,

- por ter ido à faculdade depois de ter estado tanto tempo longe da escola e ter se formado uma advogada, com oito filhos paridos – essa lição é uma de minhas favoritas – sua força, persistência e valentia;

- por ter tido coragem de enfrentar uma separação e mais ainda pela coragem de enfrentar a reconciliação;

- por ser louca de pedra (minha maior inspiração);

- por ter me possibilitado ver que sou um ser provido de dons – exatamente como você – não há limites para os amores, não há limites para os dons, para as habilidades, para os sonhos...

- por me fazer perceber que amar é poder pensar em “virar os sapatos”, mas jamais mantê-los virados;

- por me permitir seguir meu rumo – meus rumos – sem jamais me impor limites relativos a minha capacidade de rumar...;

- por ser louca de pedra (já disse isso, mas vale repetir) – essa loucura é inspiração de vida, é puxão de orelha em todos aqueles que pensam que a vida não vale a pena;

- por ser linda – sempre tive tanto orgulho da “minha mãe”;

- por cuidar do meu pai, como cuidou dos meus irmãos amados;

- por manter nossa família mais unida do que qualquer outra família que eu conheço;

- por me oferecer o sabor do amor à culinária e às artes manuais;

- por estar aí – na frente deste computador – à frente das mulheres de sua idade – outra grande inspiração;

- por ser, enfim, a minha mãe – quando talvez houvesse tantas alternativas.

Acredito em nascimentos acordados em outra esfera, acredito em pactos de almas – e por isso, quero que saiba que seja lá qual for o motivo que nos fez acordar em sermos mãe e filha – valeu a pena. Vale a pena. Se meu espírito tinha de aprender alguma coisa de nosso convívio, acho que posso passar de ano, se a razão de nosso viver juntas era me dar suporte para eu poder enfrentar batalhas – obrigada – sou algo muito próximo de uma vencedora.

Se, por outro lado, a razão de nosso (re)encontro fosse saudar dívidas, espero de coração, que me tenha perdoado qualquer dívida que eu pudesse ter tido com você, porque eu, mãe, não tenho nada a te cobrar – só a agradecer.

Te amo. Feliz aniversário. Seja sempre você e esteja por perto por mais muitos anos – você é tão importante para mim quanto é para todos que te conhecem, e pra Vida (que deve ser sentir grata por ter você sempre tão alegre e tão doida de pedra, como é).

Um comentário:

  1. Lígia, só agora li sua mensagem e, consequentemente, essa "carta". Amei! Como amava seus diários (lidos apenas quando passaram a estar na estante do escritório). E adoraria ter estado ao ladinho da Velha Mãe, quando ela leu essas confissões. Beijos e carinho,sempre!

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